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Mostrando postagens de novembro, 2016

Um Novo Dia

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Na virada de meio século, a alma me convida a ser humilde e me apresenta outro quarto para limpar. Entulhado de vaidades, reis tirânicos, súditos hipócritas acovardados. Todos sou eu. Na virada dos cinquenta é bom já ter aprendido a decifrar a linguagem da alma. Ela fala enquanto lambe as feridas e as cicatriza. Na imaturidade, eu amaldiçoava o outro, aos cinquenta aprendi, me procuro nele. A alma fala comigo através das escolhas que faço. As mais injustificáveis são as mais cheias de significado. Lá onde não faz sentido estar, lá está todo o sentido. Na virada de um século, quando acho que vou ganhar diploma de gente, a alma me abre outro quartinho cheio de entulhos. Alma obstinada, não quer deixar nada pendurado para uma encarnação futura. Não me poupa. Não me autoriza a descansar sobre o travesseiro morno de uma alienação. Nem mesmo aos cinquenta. Encho o balde de água, me armo com caixas de papelão vazias, sacos pretos de lixo, diante da porta aberta do quartinho. Lá dentro o eg

Para o meu fantasma

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Adeus e obrigada. Foi bom girar nos seus braços nesta valsa inesperada. Obrigada pela Duquesa, pela Gata Borralheira, pelo pai e pelas crianças minhas que você nem sabe que me deu. Obrigada pelo espelho onde pude pentear a minha vaidade, pelo lugar de destaque na sua corte que pude chamar de pouco. Foi doloroso ver meu tirano no seu, mas foi como um parto. Dor valiosa de onde nasci novamente. Obrigada por tudo que você nem sabe que foi. Por ter ido tão fundo em mim sem nunca ter deixado a superfície das suas vontades. Por ter me notado. Por ter chamado meu nome. Por ter evitado o meu mergulho e me devolvido a mim. Coloco este agradecimento e este adeus numa garrafa e lanço no rio de nome universo. Incógnita, me despeço. Remeto este adeus agradecido à sua alma que há de me escutar numa dimensão distante. Adeus e obrigada pelas provocações de menino, por acordar o meu menino, por dançar comigo esta dança breve, desatenta, mas necessária. Verdadeiramente, obrigada, segue seu caminho. A

O amado e odiado outro

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Teu nome é porta. Mas te chamam outro. Se sabemos olhar-te bem lá no fundo, te chamaremos porta. Tu nos trazes em gesto e verbo as dores que escondemos. Vemos no teu corpo, nossas feridas. No teu mal, o nosso mal. E isto te faz divino e mestre dos que te sabem ler. Quando pisas, maltratas ou ignoras, és professor dos que buscam a mensagem e demônio dos que escolhem não se ver. Tela de projetar mágoas. És o que fere, o que não alimenta, o impossível, o maléfico. Instalas-te feito bode nas salas dos alienados de si destruindo tudo. E viras assunto eterno com os amigos das vítimas. Ocupas delas toda a cama, todo carro, toda mesa, toda história, todo coração. E te chamam outro. Mas eu te chamo porta. E mais te amo e te odeio quanto mais cartas me trazes do universo. És tão monstro quanto o tamanho que me é dado crescer depois de ti. És o inferno e eu te chamo mestre. Se me maltratas, ensina-me a cuidar-me. Se me abandonas, faz me enxergar meu colo. Chamam-te parente, amigo, namorado, am

Fenix

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Mulheres são mergulhadoras, vão ao fundo e voltam. Se despedaçam, se desintegram, feito androide do Exterminador do Futuro e se remontam, não da mesma forma, não igual. Mulheres fazem questão de ir ao fundo absoluto, tocam os pés na areia do fundo, deitam-se no fundo e lá permanecem sob toneladas de mar enquanto sangram. Estão acostumadas a sangrar, não é um drama. Mulheres, em geral, parecem muito mais destroçadas quando deixam os acidentes amorosos. Se recolhem na caverna escura enquanto eles se lançam no próximo jogo. Saem de lá poucas vezes para encontrar uma amiga na padaria onde choram às claras, pra todo mundo ver. Faz parte do renascimento delas: morrer mil vezes em praça pública. E, de repente, mulheres se erguem no breu abismal do oceano, quando nem se esperava mais, porque a costura da nova aprendizagem ficou pronta. E começam a subir lentas, respeitando o frescor das cicatrizes. E surgem na superfície. Inteiras. Maiores. Esta, a fragilidade enganosa do feminino: virar pó

Dois tiros

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O tiro acertou-lhe em cheio o coração, disseram. E ela caiu de costas no chão: apaixonada. Respirou fundo e, com dificuldade, se levantou. O sangue escorrendo sobre o seio esquerdo e o mamilo eriçado. Tentou caminhar com as pernas trêmulas para longe do homem. Quem sabe se, numa felicidade imprevista, tivesse o coração equivocadamente nascido do outro lado? Ele apontou de novo e atirou. Uma única palavra de carinho, banal, despretensiosa, cruzou o espaço como um bólido e se arrebentou contra a omoplata dela acertando o músculo cardíaco por trás. Caiu de novo, hemorrágica. O homem virou-se de costas, distraído pelo destino e sumiu. Ela foi entregando o corpo dentro do lago quente, vermelho, outra Ofélia. Disseram que seu sangue tornou rubra toda a paisagem feito por de sol. E que seu coração cicatrizou acolhendo as duas balas como mensageiras. E ainda pulsa. Descompassado mas inteiro. Disseram e eu acredito. * * Para a amiga que faz, do amor, escola.  *