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Mostrando postagens de outubro, 2012

Safo

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Procura-se o autor da imagem O cursor pisca na página em branco. Espero, cheia de coisas pra fazer, que um texto baixe do infinito. E ainda há inocentes acreditando que crio. Acham que respondem para mim, para uma mulher de cabelos curtos pintados e rugas fundas ao lado da boca. Não acreditam que não seja eu arrancando o texto com as unhas deste teclado de plástico. Se equivocam e acreditam mais na minha embalagem de carne do que eu mesma. Não adianta mudar de nome e pedir que esqueçam, não se apoiem em mim, não se apeguem à foto do meu gato, do meu cachorro.  São o gato e o cachorro de ninguém.  As palavras passam por mim feito cacoetes de um Preto Velho. Fiz apenas pactuar com o universo que era melhor relaxar, abrir as pernas, deixar sair . E tento abrir as pernas enquanto corro afobada na multidão. Não é meu o recém nascido e não posso esperar nada dele. É parir e largar. Sou só passagem. Nem a que escreve nem a que corre louca dirigindo o carro praqui, prali, tarefeira, miss

Mulher de Vida Fácil

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Heather Faz umas duas semanas que começou a acontecer comigo. Primeiro um comichão, um arrepio, um sorrisinho de canto de boca, uma vontade inocente de continuar na cama mais quinze minutos rolando feito gato. Excitações passageiras, nada preocupante, pensei. Mas hoje, definitivamente, a coisa desandou. Fui tomada por um prazer imperativo de ser uma mulher a toa. Deixei as crianças na escola, tomei café na padaria com meu marido, andamos pelo parque e na volta sentei-me sob uma árvore e meditei.  Não havia pilhas de trabalho à minha espera e o dia lá fora estava lindo. Sentei-me diante do computador e a caixa de emails recebeu umas dez mensagens, que são o bastante para uma mulher a toa ser feliz. Nada era urgente. Nada trazia a reboque outra mulher atropelada me empurrando as costas.  Estabilizei-me num estado de graça, numa mulher básica, ligada ao dia a dia doméstico, que ganha pouco, que depende, que veste um vestido florido para ir ao supermercado.  Era como se enfim viesse a

O Menino

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O menino não está. Pode correr os olhos de postagem em postagem, só achará as filhas meninas. Nada do menino...

Asa de Borboleta

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Procura-se o autor da imagem Hoje dei banho em minha mãe. Num longo e delicado ritual de limpeza, fomos nos despedindo de quem éramos. A água que escorria pelo piso de granilite trouxe minha criança refletida. Ela sorriu docemente e escorreu para dentro do ralo.  Corri os olhos sem medo pelo corpo de minha mãe. Exposto. Uma nudez absoluta que antes nunca: nem orgulho, nem vaidade, nem razão, nem raiva cobriam mais o que ela era, minha mãe tornou-se asa translúcida de borboleta. Fragilidade forçada, obrigatória, totalmente destoante dela. Minha mãe de ferro, minha mãe trator, cadê? Momento doloroso de constatar que ela se foi levando minhas tetas de leite quente, minhas mágoas de menina, e, quem sabe, um trauma pegajoso ainda por resolver. Tenho nas mãos o corpo frágil e sofrido de alguém em quem minha mãe esteve, nada mais é possível senão cuidar, deslizar o sabonete com carinho sobre as costas arqueadas, deixá-la me guiar no como fazer e até onde ir nesta viagem. Meus olhos guard

A Malta

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Um dia, o diretor de uma escola de teatro me disse, medindo meu idealismo juvenil, que chegaria o tempo em que eu curvaria a cabeça e me integraria à malta. Minha cabeça, aliás,  andava bastante erguida pela visão de um regime militar que escoava pelo ralo da história, pelo frisson das multidões inflamadas nos comícios por eleições diretas. Eu era Joana D'arc. E ele, pobre tirano, resolvera barrar a entrada na escola de desafetos que viessem ameaçar a estabilidade do seu reino e incomodar seus pares com versões dos fatos que definitivamente não interessavam. Machucado pelo meu olhar de desprezo, rogou sobre mim esta praga de uma maturidade amarga. Um dia, exausta e decepcionada, eu diluiria meu inconformismo feito Cibalena na lama geral do poder, e me integraria, e me tornaria lama, como todos, vencida, subjugada, pelo inevitável destino de Don Quixote. Uma estrada longa me levou deste momento ao dia em que conheci José Dirceu, Lula, Gushiken, Genoíno, Paulo Okamoto e seu pares,