Postagens

Mostrando postagens de janeiro, 2023

Let it be

Imagem
A gente sempre sabe, mas esquece. A odisseia nesse planetinha chamado Terra é viagem escolhida, preparada. Não tem sorte ou azar, é roteiro estudado. Tolice seguir temendo o impossível nada. O nada que é só vazio momentâneo de respostas. O nada que é logo ali onde a mente não dá conta. Eu sempre soube. Quando jovem esperneava demais... superei. Hoje, até quando me esborracho no chão, deslizo. Cair acontece muitas vezes. A gente sempre acha que está vendo, mas não está. Tudo é enviesado nesta vida de neblina e os olhos da carne são imprecisos. E cai mesmo. Melhor se entregar à flexibilidade quando os tombos são inevitáveis. Deixar o corpo se ajustar à queda. Quebra-se menos. Eu sempre soube, mas esqueço todas as manhãs para tocar o dia. Eu sei: de onde vim, para onde vou e porque estou. Eu sei até quando acaba. E há momentos que este saber escapole, vaza para a consciência em forma de intuição. Como disse a mãe do Beatle num sonho: deixa rolar que a resposta vem. Let it be. Eu deixo. Nã

Texto para ninguém ler

Imagem
Não pude sobreviver ao suicídio de Celina. Dali em diante, interpretei minha existência. Tendo compreendido que não poderia, nem saberia segui-la, conformei-me em existir num estado de latência como aquele microrganismo que sobreviveu congelado por 24 anos num rio da Sibéria. Escolhi não falar sobre isto para não gerar desconfortos inúteis. O que vão fazer aqueles que me amam com o fato de que estou morta de pé no meio da cozinha? Aprendi que em nada suaviza compartilhar meu abismo. Este texto, por exemplo, vou publicar sem alarde, só os muito arqueólogos irão achá-lo. Aprendi também a distrair-me da minha morte entupindo as horas de afazeres, projetos, quebra-cabeças de mil peças, muitos pratos girando equilibrados na ponta de infinitas varetas... qualquer coisa que me libere do contato cortante com a memória, com a imagem nítida de estar lá enforcada ao lado de minha filha. Cena que nasce não do pavor, mas do desejo de não ter de caminhar com os pés feridos. Descansa em paz: promessa

Como se fosse um grito

Imagem
  Não gosto de falar dela.  Mas não há truque, maquiagem ou photoshop capaz de disfarçar a cicatriz que divide meu corpo. Em cada sorriso que tento, sinto o corte no meio dos lábios a repuxar. Um rasgo centralizado nascendo na testa, cruzando o abdome, mergulhando no púbis e subindo pelas costas até o topo do crânio. Obra de uma tentativa desesperada da alma de deixar o corpo num dia em que este foi inundado pela dor. Não gosto de falar dela e, em geral, guio os olhos dos amigos para o humor irônico que me socorre nas porradas da existência. Ajeito o cabelo sobre a cicatriz, visto blusa colorida de gola alta e vou reduzindo os espaços que ela habita nos olhos dos que me amam. Por que não gosto de falar dela. Mas chega a hora do banho, quando estou só na caixa de azulejos, eu e meu corpo despido que às vezes vaza num pedaço do espelho sobre a pia... e então ela me engole como uma estrada sem fim ou começo desenhada na pele. Caminho onde vagará para sempre uma mãe que anda para não doer.