Texto para ninguém ler

Não pude sobreviver ao suicídio de Celina. Dali em diante, interpretei minha existência. Tendo compreendido que não poderia, nem saberia segui-la, conformei-me em existir num estado de latência como aquele microrganismo que sobreviveu congelado por 24 anos num rio da Sibéria. Escolhi não falar sobre isto para não gerar desconfortos inúteis. O que vão fazer aqueles que me amam com o fato de que estou morta de pé no meio da cozinha? Aprendi que em nada suaviza compartilhar meu abismo. Este texto, por exemplo, vou publicar sem alarde, só os muito arqueólogos irão achá-lo. Aprendi também a distrair-me da minha morte entupindo as horas de afazeres, projetos, quebra-cabeças de mil peças, muitos pratos girando equilibrados na ponta de infinitas varetas... qualquer coisa que me libere do contato cortante com a memória, com a imagem nítida de estar lá enforcada ao lado de minha filha. Cena que nasce não do pavor, mas do desejo de não ter de caminhar com os pés feridos. Descansa em paz: promessa que me seduz. Morre de fato. Porque, ninguém sabe, mas não pude sobreviver à morte de Celina. Tirar seu corpo da forca no banheiro, tentar desesperadamente trazê-la de volta à vida e, num ato de loucura, dizer a ela que estava livre para ir... foi mais do que caberia no ser humano que eu era. E ele se estilhaçou no esforço. Restou uma folha deslizando impotente correnteza abaixo, dissolvendo-se a caminho de algum mar. E é mais do que saudade, mais que susto, é mais que o amor imenso por Celina... É sentir no corpo a dimensão da própria solidão. O vazio onde nenhum grito reverbera. A morte não me levou a filha, mas a ilusão de sentido.   Em que narrativa divina eu conseguirei agora constelar o que sinto? A cena das manobras de ressuscitamento no banheiro? E tantas imagens piores que brotam neste lugar a cada minuto? Que deuses um bicho humano ainda consegue amar? Eu não sobrevivi ao suicídio de Celina, mas não se nota. Trabalho em silêncio, voluntariamente, para que ninguém o perceba. Recorro ao meu dom da graça, à determinação caprina, à obsessão em fazer, para disfarçar no canto da foto a mulher morta. Não darei esta vitória às bordadeiras do destino. Me postarei na contramão da fatalidade como um tronco que lança a cabeça para fora do rio. Dividirei a correnteza em duas com o poder da minha morte lúcida. E me dirão viva, talvez forte, quem sabe espantosa. Que esta mentira boa, neste labirinto de espelhos ilusórios, distorcidos, sirva ao resgate de outras Celinas.

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