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Mostrando postagens de setembro, 2021

Nonada

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Prazer no nada. Nonada é a minha casa. Casa de quarto e sala e um banheiro bem mínimo. Sem cargo, função, listas de ter e fazer. Sozinha boiando num silêncio indecente. Sem perspectivas que avancem para além de criar o jantar. Sem roupas na mala que durem para além de dois dias. Sem semana que vem. Prazer que sobe pelas pernas a cada casca morta despregada da alma. Prazer obsceno do corpo nu vestido só de essência. Sensação de estar pronta desde o começo, de bastar. Descoberta surpreendente do simples depois do nevoeiro das complexidades. Descoberta pacificante de que fui eu quem desenhou o labirinto que atravessei e sempre soube a rota a seguir. Fui eu quem planejou cada beco sem saída e concordou em esquecer o mapa em nome da aventura de viver.  Fui eu quem salpicou as minas terrestres, os cacos de vidro, os oásis, num projeto generoso de evolução. Eu criei a complexidade para sobreviver a ela, desmistifica-la e voltar leve, imaterial, imprevisível, para Nonada. * * *

O Sol está em casa

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O sol na casa da vida: a taróloga olhou com alguma esperança de que ela sobrevivesse àquele atropelamento existencial. Estava lá, apesar da noite escura da alma: o sol na casa da vida. Na cidade devastada pela bomba, uma mulher se ergue dos escombros, ferida mas de pé: o sol na casa da vida. Não esteve sempre lá, ela sabe. Foi um dia um sol desenhado a lápis numa folha de caderno, sem luz e sem cor, que ancorava uma vontade pálida de viver. Papel colado na cabeceira da cama para lembrar de uma eterna busca quando nenhum sol havia. Está lá agora, a mulher das cartas disse.  Grande e luminoso, mas feito de caquinhos: ela sabe. A vontade de viver inventada estrada afora na colagem de muitos pedacinhos que pareciam impossíveis de encaixar. O olhar anonimamente amoroso para o mundo, seus seres e suas histórias, conquistado. Está lá feito mosaico na carta do tarô e no meio do peito dela. É seu lastro na passagem do furacão que carregou quase tudo e lançou longe na impermanência. O sol na cas

A Insuportável

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Ela está louca, concluiu a ciência, a família, os vizinhos. Falando coisa sem coisa. Contradizendo os sentidos, as bulas, as receitas, as fórmulas: chama tudo de invenção e propõe aos amigos que acordem. A realidade é uma ilusão, repete. Foi assaltada por esta constatação e deu pra enxergar tudo misturado. O indivíduo é uma mentira. Tudo é junto, é compartilhado. Está louca.  Afinal, o limite é visível, claro, inegável. Eu não sou a mesa que não é o cachorro que não é o vento que não é o homem negro que não é o judeu que não é o transexual que nada tem a ver com aquele aborígene da Nova Guiné. Fato. Ela está louca. Mas o pior não é isso. O insuportável é a gargalhada louca dela pairando acima da nossa dor cheia de limites. * * *

A minha história verdadeira

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Há 3 meses minha filha de dezesseis anos se matou. Eu estou aqui para dizer o que comecei a aprender antes dela partir. O que, hoje entendo, me foi ensinado para que eu soubesse fazer parte da história dela. Aprendi que você narra a sua vida, cria esta narrativa, seja ela qual for. Não existe A realidade, O fato. Existe a história que você conta... que você se conta. E vale para meninas que se matam e para tudo mais. Então, te conto agora o que escolhi me contar. Após um ultrassom, no terceiro mês de gravidez de trigêmeos, soube que um dos bebês tinha quase 70% de chance de ser portador de síndrome de down. E o fato deste bebê carregar uma deficiência poderia resultar no aborto espontâneo dos três. Uma das possibilidades, neste caso, para evitar riscos para todos, seria tentar uma redução: retirar apenas aquele feto. Mas, a redução também poderia resultar na perda da gravidez. Sem paz no conhecido fui bater na porta do mistério. À noite, na minha cama, conversei com a criatura no meu v