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Coragem cenográfica

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A coragem do extremista é cenográfica. Serve só ao espetáculo. Coragem de gritar ódio em direção à muralha da própria bolha que sempre vai devolver-lhe o eco. E até quando explode abraçado a uma bomba, ele é o que menos se arrisca, protegido pelo conforto de habitar um universo simplório dividido entre o bem e o mal. Poupado pela preguiça emocional de poder ser indiscutivelmente do bem. Preservado pela ideologia que ele transformou em redoma inexpugnável. O extremista nunca corre riscos de verdade porque nunca corre o risco de se expor à verdade do outro. É o mais assustado dos seres, onde o medo fez sua melhor obra. A coragem mesmo está naqueles que se arriscam na metade do caminho onde os mísseis dos dois lados caem e são capazes de parar de correr no meio do estouro da sua própria manada. E abrem mão do espetáculo para trabalhar no terreno mais anônimo, menos midiático, menos imediato, menos lucrativo da construção de pontes. * * *

Chega de Show

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Zé Cenoura montou seu cirquinho poderoso do mal. Movido pela cenoura gigante e pontuda que habita seu inconsciente, Zé Cenoura equipou o cirquinho do mal com coisas pontudas que ameaçam. Ele tem uma técnica infalível aprendida com o clã cenoura onde habitam os Zés da comunicação do cirquinho do mal: berrar atrocidades no alto-falante do mundo. Manter o ser humano assustado e distraído. Vender culpa pra quem está frustrado e achando a cenoura pequena. Tá frustrado? Tá sem grana? Tá sem emprego? A culpa é do vizinho, do preto, do gay, do latino, do chinês, do extraterrestre e Zé Cenoura tem sempre uma solução simples, drástica, miraculosa, que já foi tentada e não deu certo mas não importa desde que você acredite mais uma vez que existe  uma solução simples, drástica, miraculosa para os problemas. O que importa para Zé Cenoura é o show do cirquinho do mal, tirar do guarda-roupinha sua fantasia de herói e correr pela sala com o braço erguido e o punho levantado no ar,  super Zé C...

Pode Acabar

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Não é mais sobre a guerra. Nenhuma guerra. É sobre a Terra, toda a Terra. Por que não é mais sobre quem estava certo, quem ganhou, quem venceu. É sobre a espécie que sobreviveu. Não é mais sobre o dono da autoridade, quem tem o cargo pra mandar. É sobre assumir a autoria de pequenas   crueldades. É sobre a capacidade de autorizar essenciais alegrias. Não é mais sobre recursos a explorar. É sobre  a sabedoria de  recusar-se a explorar, mudar o curso. Nem é sobre a urgência de cada reciclagem. É sobre a inteligência de ouvir a mensagem vital e se curvar humildemente ao ciclo natural. Não é mais sobre o poder que nos trouxe até aqui. É sobre reinventar o poder pra seguir sem apodrecer. Não é sobre o crescer é sobre o parir. Nem sobre o ter, é sobre o sentir. É sobre consumir sem adoecer. É muito sobre o que virá e ao mesmo tempo é sobre o já, o agora. E não é sobre a dor que vem de fora, o inimigo que ameaça. É sobre se saber o predador e sempre a caça. E não é sobre ser sal...

Meio Ovo

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Nunca está bom. Sempre falta. Olho cheia de inveja para o jacaré no banco de areia no meio do rio. Plácido. Não falta nada. E quando falta é tão simples, tão reto. Mas eu caí na esparrela de vir ser humano. Um bicho cheio de receitas de ser. Para mim falta tudo. Acordo de manhã precisando beber menos, ganhar mais, encontrar o melhor corte de cabelo, fazer algum curso, meditar, respirar usando o diafragma, ser mais positiva, comer mais ovo, comer menos ovo, comer meio ovo, comer dois ovo, não errar o plural de ovo. Estou sempre errada, inadequada, devendo. Não consigo simplesmente apoiar a barriga no banco de areia e olhar o céu. A barriga que apoio no banco de areia é grande demais, é flácida, é um corpo estranho plasmado no meu abdome, um continente ou conteúdo psicanalítico que não cala e não me deixa em paz. Não sendo um jacaré, preciso evoluir sem descanso: encontrar minhas sombras, desvendar meus traumas, buscar a iluminação mas, claro, com humildade, não muita humildade que pode ...

Poder Maior

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Chegou a hora de avançar na contramão. Chegou a hora da anti-performance. Onde funciona o vídeo curto, falar devagar e encher de pausas. Onde impera o filtro, imprimir rugas e manchas. Onde a lei é o que vende, soltar borboletas inúteis. Onde negociam perfeição, seios caídos. Onde gritam superação, tombos. Onde me empurram pra frente, sentar. Onde a meta, o humano. Onde o orgulho, desculpas. Onde consumo, autoestima. Onde rede social, abraço. Onde o scroll, o livro. Onde túnel, árvore. Onde a verdade, o amor. Chegou a hora da anti-evolução. Onde o poder, o poder maior. * * *

Meu cadinho preto

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A origem da minha família mineira remonta a  uma cidadezica do interior, assombrada por conservadorismos e preconceitos, comuns às cidadezicas do interior. Terra de fazendeiros brancos, elite branca do Brasil agrário fundada sobre os alicerces da escravidão. Ali nasceu minha mãe, mulher forte talhada para as linhas de frente. Carregada dos tais preconceitos herdados, já casada e com sete filhos, já morando em Belo Horizonte, cuidou de me afastar dos pretos que moravam num cortiço do lado de casa. Lembro de mim mesma estuporada de alegria dentro de uma bacia grande de latão tomando banho com uma menininha preta. Bacia no chão, o cortiço coletivo, colorido e sonoro me abraçando, a água morninha, o sorriso muito branco da menina... Minha mãe me levando embora. Ali não mais, nunca mais. Fui carregada no colo dela olhando para trás sobre seu ombro para um mundo preto ao qual eu não pertencia. Mas carreguei o rosto redondo e brilhante da menina da bacia. Como se a água do banho tivesse p...

Vida Cachorra

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Essa cachorra não é uma cachorra É um colete salva-vidas  que coloquei Em nós quando minha filha desistiu de viver Essa cachorra nasceu mais ou menos quando  A menina decidiu partir Essa cachorra ficou maior que eu imaginava Essa cachorra parece mais perigosa do que é Essa cachorra é bruta e machuca quando quer brincar Essa cachorra pode ser feroz e violenta Principalmente quando assustada Essa cachorra me puxa para caminhos que não sei Essa cachorra é o amor ambulante, peludo,  com olhos eternamente pedintes de carinho Fazendo o ficar valer Essa cachorra não é uma cachorra É uma âncora jogada do barco da dor No oceano das possibilidades E foi chamada de Vida Como havia de ser. * * *