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Enquanto derretemos

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Minha caixa craniana parece que vai rachar como casca de ovo cozido tamanho o calor deste sol de inverno... outono?... primavera? Ninguém sabe mais. Estou largada sob o sofá extensível feito um jacaré à beira do rio. Alcanço o controle remoto da TV e assisto um filme... dois filmes... Preciso levantar e fazer algo útil, mas só consigo boiar feito um pedaço de carne numa sopa de legumes. O ventilador soprando firme na minha cara um ar cada vez mais quente. Não sigo para o terceiro filme, me iludo de que preciso checar as mensagens do whatsapp atrás de algo importante... é só um cacoete pra que eu divague para as redes sociais e passe mais uma hora babando enquanto vozes engraçadas dublam vídeos de bichinhos fofos ou crianças famélicas e machucadas surjam em apelos desesperados da Cruz Vermelha, dos Médicos sem Fronteira, da Acnur... Maldito algoritmo que sabe da minha terrível culpa em existir deitada neste sofá extensível enquanto crianças morrem. Uma hora empurrando a tela com o dedo

Auto-Acabados

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Saco cheio. Falta gritante de vontade de descer para o playground humano. Saco cheio de ser humano. Bicho cagado. Fazedor de guerra, triturador de crianças inocentes, animal corrosivo. Exterminador de outras espécies e da própria. Inventor de crenças que viram cruzes pra carregar como este capitalismo burro. Aposta todos os dias que um montão de gente na merda e um tiquinho com a grana toda vai funcionar. Colecionador de inutilidades premium num mundo cada vez mais violento. E meu saco inchado e vermelho querendo explodir. E o babaca desregulando o clima, destruindo floresta, jogando a desgraça da embalagem de plástico na rua, comendo a camada de ozônio. Não é um invasor alienígena do mal, é o Zé, meu irmão humano. Reflexo horroroso de mim mesma no espelho. Bichinho ganancioso, egoísta, cruel. Meu saco pulsa em espasmos como se quisesse vomitar o ser humano de dentro de mim. Não tenho como. Engulo o bicho com goladas de frustração. E meu saco, elástico, não sei como, vai se enchendo ma

Enfim, só.

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Vem solidão sem disfarces. Estou abrindo mão das distrações...  do barulho que o outro faz, da solução que o outro não é. Sou um bicho exausto em busca de um oco. Outros carregam expectativas e promessas, eu ando vazia de entregas e esperas.  Vem solidão nesta maturidade calma. Vem  que iremos jogar cartas madrugada adentro. Vem que, enfim, tenho os braços abertos de te abraçar e deixar o outro ir. Já posso me acompanhar de palavras e cachorros e não dói a mais. Vem solidão experiente, imune à panaceia dos romantismos. Vamos tomar um chá quente ou um vinho frio catando histórias numa tela de LED luminosa. Vamos chorar as misérias humanas sentadas no sofá com todas as luzes da casa apagadas. Vamos dançar abraçadas e levemente bêbadas, desvendando a grande enganação que chamamos de realidade. Vem solidão sem fantasias de completitude, solidão pedra fundamental, solidão estruturante, original, celular. Vem que o tempo me ensinou a sua paz. Vem que já estou velha o suficiente para amar-te.

Boia

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Boia, criatura. Não salva o mundo, nem salva a si mesma. Boia. Não responde nada às esfinges, senta no chão do labirinto e esquece a saída. É tudo labirinto. Boia, criatura, que nem todo tempo é de nadar. Solta o corpo na superfície do mar. Solta a mão dos seus sustos. Quando o relaxamento é verdadeiro, a gente não afunda. Água e corpo sabem negociar na leveza a entrega sem afogamento. Boia sem nem inventar praias próximas. Acata esta hora de não ir, de não saber, de não ter, de só estar. Confia no oceano. Boia. Está tudo certo como é. Às vezes é pausa, às vezes é nada, às vezes é silêncio. Aprende a não chamar sempre e a existir quando não há escuta, não há estrada, não há porta, só há espera. Não dê braçadas, não mergulhe, deita esse corpo tenso e triste sobre o colchão de água e fecha os olhos. Nem do céu você precisa agora. Sente o balanço doce da água densa que te leva para um destino que só ela sabe. Não saiba, criatura. Tudo é beira de abismo, o meteoro pode estar a caminho ou a

A que não é

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Escolho me embebedar e escrever. Sozinha. Eu, a garrafa e a folha digital. Descarto as coisas de fazer gente feliz: o amor, os filhos, a realização profissional. Descarto. Abraço minha sina só. Escrever. Pensando bem eu deveria estar fazendo algo mais normal para uma mulher da minha idade. Não faço. Não penso. Não busco o que não tem de haver. Encho a taça e brindo comigo ao silêncio desta casa vazia. Brindo à minha coragem na solidão desta noite. Não espero. Não almejo. Encaixo a taça de vinho entre os lábios pacificados e engulo meu presente. A casa se esforça num silêncio fundo. Só o som dos meus dedos no teclado denuncia alguma vida a se cumprir. Sorvo outro gole. A embriaguez me salva de um mundo assustadoramente desinteressante. Me instalo uns metros acima da lucidez. E entendo que, de verdade, não quero mais nada. Me perdoem os que planejam, os que almejam, os que anseiam... Eu não quero mais nada. Brinco de estar quando nem existo. Brinco de coisas de fazer gente feliz e invent

Atropelada

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Hoje, no parque, fui atropelada por uma borboleta. Caminhava perdida em meus dramas diários de sobrevivente num planeta áspero quando ela veio louca e se atirou quase dentro dos meus olhos. Tomei um susto de beleza, harmonia e cores e fui arrancada daquela ruminação amarga e inútil. Ela, a borboleta, rodou em volta da minha cabeça como se quisesse garantir que eu havia recebido a mensagem. Como se alguém, lá na dimensão desconhecida que chamamos céu, a manejasse com um joystick. Rodou, rodou, passou umas três vezes diante do meu rosto e apenas quando ri de mim mesma, se foi. Posso destruir toda sua poesia e chamá-la de acaso, posso aniquilar seu poder de abrir um rasgo na realidade ilusória, posso espantá-la com a mão como se fosse apenas um inseto estúpido e atarantado. Mas não posso. Estou lá jogada no chão, atropelada, com as certezas fraturadas, sangrando arcos-íris, com as retinas vidradas num céu que eu nem tinha visto tão azul. * * *

Ser o que respira

Primeiro é preciso estar vivo Estar presente Não se voa sem um ponto de apoio Primeiro é preciso estar aqui Saber onde é aqui Perder o susto Sentar no agora Porque, senão, não tem depois Senão, quando o depois é sempre Só tem angústia Primeiro é vital ser o que respira E mais nada Estar ancorado no corpo Com as mãos sobrepostas Saber-se calor Saber-se vivo Não uma máquina de ir Não um poço de dever Um ser, apenas um ser Primeiro é preciso entender Que algo sempre permanece Que algo segue Mesmo no desespero Alguém está ali Sereno como uma rocha Ainda que falte muitas vezes Tempo pra percebê-lo Ele sabe o destino Então resiste no instante E não avança  Não dá um passo Se for arrastando a alma no asfalto.