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Devir

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A deusa arrancou-me o cabresto da cara, sem piedade. Eu, que ainda me agarrava a uns farrapos de certeza. Entrou imperiosa na minha tarde monótona e cortou as amarras dos meus arreios. E atirou minha auto piedade para o invisível. Acabou, ela disse. Nada mais de comprar expectativa pra alimentar queixa. Levanta e calça no pé as encruzilhadas,  a vida agora é devir. É acordar e entrar no rio, e sair sempre em outro lugar. Sem esperança de porto, sem medo de barranco. Acordar rio. Acabou, ela disse, o susto, as assombrações sob a cama, o mal à espreita, a dor de estimação. Agora, minha filha, a vida é devir. Acabou a morte, não tem mais perde e ganha. Tudo está perdido porque nada é seu. A deusa deu as costas, sem alarde, e mergulhou no meu peito. Acabou o drama, reforçou na profundidade da ausência: levanta e se veste de labirinto, e dança: a vida agora é devir. * * *