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Mostrando postagens de fevereiro, 2023

O flamingo e o guarda-chuva

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No quarto fantasma, o ventilador de teto faz um ruído monótono de pás cortando o vento, a chuva tamborila na telha lá fora e minha mente-câmera novamente confere ao todo esta qualidade de filme. Paredes brancas estranhas do meu quarto das quais sempre desconfio. Boio, deitada na cama, num cenário surreal que insisto em desconhecer: minha casa. Tantas casas tive. Tantos quartos estranhos vivendo na memória. Eu sempre lá: flutuando uns centímetros acima do colchão e vendo os móveis virarem fotografia. Tentando com força voltar para o corpo, encaixar na matéria, no berço de fumaça. Vivendo com as unhas fincadas na cama: uma forma estúpida de viver. No quarto fantasma, na realidade que não me convence, sentindo o perfume de outras dimensões, talvez louca de pedra, boio acima do colchão duvidando da existência do ventilador. Eu: ser mal encarnado, mal ancorado ao corpo, mal iludido, fingido. Um guarda-chuva rosado no meio de um bando de flamingos.  Tentando mimetizar as aves e imprimir-me n

Não saberá

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Não saberemos a resposta, amiga. Esta a realidade crua, incômoda e inescapável. Não saberemos a resposta. Somos autorizados, no máximo, a brincar de saber. É a condição para habitar neste playground humano. Só saber que nada sabe. Fuçar, fuçar, fuçar, cavar a terra até sangrar os dedos, até varar o mundo e não sair do lado de lá com uma mísera certeza, um vislumbre do que vem a ser esta existência. Por que é a dúvida que nos constitui na imensidão dos seres dramáticos e inquietos que somos. É o nosso barro.  Inescapável. Não saberemos a resposta. Então brinca de saber, renuncia ao susto. É o que resta. Cria ou adere a milhares de teorias certeiras e sólidas como as nuvens no céu. Enche o fosso do seu castelo de certezas e se abriga na torre alta feita de crenças. Lá, da torre, olha a vastidão das terras que em algum ponto se tornam desconhecidas. Uma válvula do seu coração irá tremular e descompassar ligeiramente tocada pelo sopro do medo. Lembra que é só um jogo, o fosso, a torre nunc

Tudo bem assim

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Está tudo bem assim como está, assim como é, assim como dá. Reserva uns minutos na semana para se pegar no colo com doçura e repetir o mantra:  está tudo bem assim como está, assim como é, assim como dá. Cala a boca que acorda discordando, escrava da mente que nunca se satisfaz, e permite a si mesmo ser o que é. Larga a lapiseira que desliza compulsivamente em esboços do futuro, em projetos de realinhamento, de evolução, de preenchimento... Este saco de pedras que colocamos nas costas antes até de escovarmos os dentes e parecem raras, mas, se fossem, não pesariam tanto. Cascalho brilhante que nos soterra. Repete pra si mesmo neste instante como uma oração: está tudo bem assim como está, assim como é, assim como dá. Olha o todo e percebe o ser que luta, peleja, incansavelmente e mesmo assim nunca basta. Percebe seu direito de parar, de não corresponder, de não saber, de não conseguir. Para e reconhece a cenoura na ponta da vara à frente da carroça. Você nunca irá comê-la. Enxerga o jogo

CARTA CRUEL

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D emorei a dizer da tua crueldade. Guardo em olhos de maré alta a forma como caminhaste rígida e cheia de ódio rumo à morte. Não era um momento de dor. Ias morrer naquele instante e não em outro porque te desautorizaram as reivindicações tirânicas e sem sentido. Nunca esquecerei as tuas passadas decididas a mostrar-nos do que eras capaz. E foste cruel como poucas criaturas se permitem ser. Deixaste uma carta fria, burocrática, bem cuidada demais para o tamanho da violência que pretendias arrematar. Uma carta sem a palavra “mãe”.   Demorei a erguer esta prece e te contar: foste de uma crueldade suprema ao matar a filha que tive. Me arrancaste um braço sem anestesia num susto daqueles que altera o código genético no interior da célula. Demorei a dizer desta tua soberba desprovida de amor porque suicidas ficam envoltos num silêncio apavorado como se fossem intocáveis. Não são. Seria eternizar esta crueldade, se eu não pudesse dizê-la. Segues sendo a minha filha e seguirei falando contigo