CARTA CRUEL

Demorei a dizer da tua crueldade. Guardo em olhos de maré alta a forma como caminhaste rígida e cheia de ódio rumo à morte. Não era um momento de dor. Ias morrer naquele instante e não em outro porque te desautorizaram as reivindicações tirânicas e sem sentido. Nunca esquecerei as tuas passadas decididas a mostrar-nos do que eras capaz. E foste cruel como poucas criaturas se permitem ser. Deixaste uma carta fria, burocrática, bem cuidada demais para o tamanho da violência que pretendias arrematar. Uma carta sem a palavra “mãe”.  Demorei a erguer esta prece e te contar: foste de uma crueldade suprema ao matar a filha que tive. Me arrancaste um braço sem anestesia num susto daqueles que altera o código genético no interior da célula. Demorei a dizer desta tua soberba desprovida de amor porque suicidas ficam envoltos num silêncio apavorado como se fossem intocáveis. Não são. Seria eternizar esta crueldade, se eu não pudesse dizê-la. Segues sendo a minha filha e seguirei falando contigo com a honestidade de sempre. Depois de cuidar-te desde aquele dia, mesmo morta, vim aqui desta vez matar tua vítima. Escreveste na carta que nos tinha amor. Ainda não sabias o que era amor. E talvez fosse essa falta mesma do sentir, o buraco gigante que te atormentava. Boiavas no vazio da desconexão. Insuportável. Mas não estou aqui atrás de culpas. Não tiveste culpa, nem eu.  Não é sobre isto. É sobre afastar de mim esta crueldade dando-lhe o nome certo. Não a deixar mais vagando perdida dentro de mim feito veneno sem nome. A morte de um filho é um fato natural desta existência, tive que aprender, mas é também uma crueldade gigantesca e tu, minha filha, terás que integrá-la em tua mala de viagem. Tua mãe só precisava dizê-lo. Já sinto o coração mais leve seguindo para a porta do perdão. Tirei de ti a vítima, mas não a trouxe para mim. Sei que em algum plano invisível dois seres iluminados flutuam lado a lado sem nenhuma outra relação que não seja a igualdade. Somos eu e tu eternamente conectadas. E não és minha filha. E a crueldade não existe. Pois somos uma só.

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