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Mostrando postagens de abril, 2020

Nada lá fora, só corpos

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Filme "Ensaio sobre a cegueira" O mundo na minha janela converteu-se em uma foto surreal da normalidade perdida. Não fossem algumas pessoas passando de máscara na minha rua, nada, absolutamente nada na paisagem me causaria qualquer estranhamento. O Jasmim Manga segue sua toada quase sem folhas rumo ao inverno. Alheio às tragédias humanas. O outono chegou na hora combinada e com ele as tardes mais cinzas e as temperaturas mais frias e os pores de sol mais lindos. Minha janela mente para mim que a vida segue e seguirá a mesma, mas rumores chegam pelo noticiário e dão conta de que já somos mais de 4 mil mortos. Não há 4 mil corpos na minha rua, só um vento suave. E eu poderia escolher o vento e negar a pandemia. Ela não veio, é tudo um filme, um sonho mau. Eu poderia inventar minha verdade e seguir num mundo sem pandemia por algumas horas mais. Eu poderia me juntar às manifestações de rua pedindo a volta ao trabalho. Eu poderia me colocar sem máscara colada aos homens e mu

Álcool 70

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Está decretado: eu odeio as compras de supermercado. Profundamente. Estou aqui isolada em minha casa a aguardá-las. Meu marido, soldado designado para cruzar o campo minado de vírus e retornar com os mantimentos, já avança no front com a enorme lista na mão. Somos cinco pessoas no auto-cativeiro e temos mais fome do que o normal. Efeito emocional da quarentena. Significa que, hoje, o soldado voltará com uma, duas, três, quem sabe quatro sacolas cheias. Malditas, desgraçadas. Todas carregadas de caixinhas, saquinhos, forminhas ameaçadoras. Estou aqui sentada na cozinha em estado de torpor a aguardá-las. Com um spray de álcool 70 graus na mão direita e no meio da cara uma expressão congelada de desânimo. O vírus talvez seja evitável, adiável... as hospedeiras compras de supermercado, não. Já as odiava antes, mas, levemente. A peregrinação entre os corredores labirínticos do supermercado, as prateleiras coloridas onde produtos e marcas se embaralhavam indecifráveis, a fila morta do ca

O Imponderável

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Está difícil andar no fio da navalha entre a fé cega e o conhecimento que machuca. Há sempre um lugar no meio onde a temperança nos aguarda, mas há tempos vivemos em dramáticos extremos. Há gente que precisamos assustar para que se cuidem, pois há quem só enxergue quando a vida o estapeia. E para estas é preciso desenhar a tragédia em detalhes e repetir diariamente feito mantra. Portadores da perigosa cegueira da ignorância, há que esfregar-lhes a morte no fuço para que não saiam, não se arrisquem, não morram, não matem. Mas há também um excesso de saber que desestabiliza. Uma curiosidade mórbida da mente que quer ser alimentada com todos os ângulos possíveis da tragédia. Uma necessidade de negar o imponderável e ter certeza inabalável sobre o futuro. Por que a mente não quer que você sobreviva, ela apenas precisa saber tudo sobre a sua morte. Nada mais aterrorizante para a ela que o susto: o desastre fatal que pula de trás do muro num dia de sol. Tranquiliza-se mais na desgraça pre