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Mostrando postagens de outubro, 2015

História emprestada - Nosso amado porão

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Eu gosto do porão. O meu, o dos outros. Eu sinto um prazer indescritível quando desço as escadas e o vento vem gelado lá de baixo tocando seus dedos nas minhas pernas. Vou submergindo devagar e deixando na superfície a enfadonha realidade e seus limites. Bruxa antiga, não funciono bem sob os raios solares. O cotidiano da maioria só me comove quando reflete os gemidos e as cores rubras do porão. Desço as escadas todos os dias, religiosamente. Vou encontrar meus fantasmas, reconhecê-los, dançar com eles muitas valsas, segurando seus cotos sem mão. Volto para a superfície abastecida dos horrores do meu passado. Meus fantasmas os entregam a mim como pedras preciosas sabendo que logo voltarei para buscar mais.  Dores de muitas cores, mágoas que brilham, violências fluorescentes, eu as tenho. E as procuro nos outros, as recebo, as acolho, entendo o que elas dizem, traduzo muitas vezes, para os perplexos, sua fala.  Conheço todas as entradas e saídas do porão e ajudo os Minotauros com seus

Solidão e chicotadas

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Eu não ia me casar. Aos trinta e poucos anos vivia a angústia de não me ver casada e ter de aceitar isto. Aquela triste sucessão de homens inviáveis era o sinal inequívoco: eu não ia me casar e ter filhos. E não era uma entrega simples abraçar este destino. Mulheres, em geral, querem ter marido e filhos mais do que querem ter um amor. Um grande amor que não se converterá em marido e filhos carrega o peso do sacrifício. Parece uma programação de fábrica: case, tenha filhos. E eu nem sabia se aquilo era mesmo uma necessidade da alma ou um cacoete social. Queria ou precisava? Mas, de repente, estava tarde demais e não havia nenhuma perspectiva: só os inviáveis de sempre. E combinava comigo: a escritora solitária, seu cachorro, sua taça de prosecco. Eu já era um tipo fora da curva e ninguém ia se incomodar se eu aprontasse mais esta: não casar, não ter filhos. Mas era penoso. Pior que a sensação de fracasso era aquele apego à imagem das outras: as mulheres casadas, amadas, mães, realiza

Sangue entre os dentes

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O ser humano é um bicho. Dentro, carrega um bicho. Inventou-se legal. Divulgou-se um bom bicho. Não é. Bicho distorcido pela civilização, guarda em si uma agressividade desconectada, sublimada quando dá, aplicada quando transborda. E transborda muito. Haja civilização para segurar o bicho humano. Alguns andaram mais para longe da própria fera. Muitos não. Seguem protagonizando espetáculos de horror e violência mais chocantes que o bando de lobos no Animal Planet que estraçalha uma raposa e uiva em comemoração com as bocas sujas de sangue. Não podemos estraçalhar o síndico do prédio e dançar no salão de festas com a boca suja de sangue. Não pegaria bem. Acabou aquela farra de arrebentar a cabeça do humano da tribo vizinha com uma clava. Comê-lo então numa grande festa dos vencedores? Esconjuro! Isso foi há muito tempo, a gente não faz mais isto. Ou, na verdade, faz sim. A gente segue matando um montão de gente por causa de tênis, religião, opção sexual, sexo, cor, grana... Pra saciar