Até que te escolham

Magaly foi queimada viva. Não foi na Idade Média, foi ontem, em São Paulo. Ou foi na Idade Média ontem em São Paulo. Magaly cometeu a estupidez de ter apenas trinta reais em sua conta no banco. E irritou os bandidos com sua pobreza. Sentada num sofazinho simples, dentro de uma casinha simples, num bairro simples da Grande São Paulo, Magaly foi queimada viva pra aprender a ter dinheiro na conta quando o bandido vier. Enquanto Magaly gritava e se debatia e sua pele colava no plástico incandescente do sofá, há alguns quilômetros dali, eu tinha mais sorte. Um moleque enlouquecido pelo crack apenas levava meu celular sob o olhar crispado da minha filha de oito anos. Nem o moleque, nem os homens que queimaram Magaly, são mais gente. Vejo o moleque o tempo todo na janela do meu carro, a fala automática, o olhar morto, talvez uma arma na mão. Não há ninguém ali. Um zumbi de série americana que comeria o meu braço se seu objetivo fosse carne humana e não crack.  Magaly ficou encurralada em seu consultório de dentista com duas ou três hienas famintas, sem moral, caráter, compaixão, escrúpulo, alma. Uma delas demenor. E morreu lenta e dolorosamente para mostrar mais uma vez a cada um de nós o quanto temos sorte. As hienas mortas-vivas estão de um lado e outro. Elas desconhecem a compaixão pelo outro. Elas só enxergam sua própria fome de grana, de poder. Estamos entrincheirados entre os zumbis da segurança, os zumbis do judiciário, os do executivo, do legislativo e os zumbis do crime. E nenhum deles enxergou ou enxergará Magaly. Ela é só uma foto no jornal, um número na planilha, mais uma que queimou no fogo do inferno que vai engolindo as cidades do país. O governador do estado, com sua virilidade de chuchu, abana estatísticas numa folha de papel fria e burocrática que não o defende, que não me defende e que queimará junto com o nosso corpo. E eu compreendo mortificada que a mulher queimada viva é minha irmã, minha filha, sou eu, amanhã. Não tenho os seguranças e o carro blindado dos chefes políticos e suas famílias, e não tenho muita grana no banco para o bandido. Abatida, apopléxica, deito no fundo da trincheira e choro. Lá fora, dizem, o Brasil cresce a passos largos, cresce sem confrontar a imoralidade que carrega na essência, pisa no acelerador e avança sem encarar suas doenças crônicas, avança arrastando Magaly no chão depois de queimada viva. Não cresce, hipertrofia. E nós vamos catando cavaco junto, e tendo sorte, até que a hiena nos escolha.
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Comentários

  1. texto bem escrito, mas trago um contraponto para discussão:
    "nenhum deles enxergou ou enxergará Magaly" mas também: nenhum de nós enxergou ou enxergará a vida podre e limiar em que viveram e vivem os bandidos, que ignoraram a vida humana assim como desde nascença ignoraram a deles. a água está batendo na bunda.

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    1. Tenho medo que seja pior do que isso. Tenho medo da imoralidade entranhada em nós todos, ricos, pobres... Há muitos povos que na miséria das guerras, das bombas geraram exemplos fantásticos de superação. Tenho medo...

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    2. Nasci, cresci, estudei e vivi por 20 anos em uma favela... não esperei que me vissem para ser alguém. Fui ignorado mas não ignorei minhas possibilidades. Conheço um monte de favelados que vivem na dignidade, sem buscarem o que outros conquistaram. A água bate na bunda de todos. Então merecem o mesmo fogo que atiçam. Tudo tem uma explicação lógica até que nos tornamos parte da estatística. Para mim deveriam ser queimados em praça pública, com hora marcada. Assim poderiam servir de exemplo aos que desejarem queimar outras Magalys.


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    3. Não posso dizer que não tenha vontade de revidar, que não estaria lá abanando a fogueira destes cabras.

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  2. Discordo do comentário, pois um dos bandidos andava de Audi . E aí ?

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    1. Há jovens classe média assaltando, colocando fogo em índios. Há pobres na favela vivendo com extrema dignidade. E aí?

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    2. E aí, que não é a pobreza a justificativa e sim a impunidade que gera toda essa onda de violencia e de que estamos a Deus dará . Quem cometeu esse crime é menor de idade e portanto ficará no máximo 3 anos preso. E ainda temos o governo Federal contra a mudança da maioridade.

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  3. Muito bom texto, explica bem nossa desesperança diante do anonimato de nossa adolescência-zumbi, de nós mesmos diante da monstruosidade por nós criada e perpetrada sem que possamos sequer acalentar qualquer laivo de pequena mudança para melhor. Sorte aos que têm mais de R$ 30,00 na conta.!

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    1. Obriga Juan. Vamos cuidar uns dos outros. É o que resta.

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  4. Um excelente texto!

    A dor limita meu comentário e eu já ando tão desesperançosa que seria capaz de ficar divagando aqui por horas.

    Um beijo e como vc diz, vamos juntas!

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  5. Revoltante... Mas mesmo assim poucos expressam a sua. Nunca saberemos o que é "ser escolhido" até que o sejamos. E viveremos com medo? Vamos nos privar das coisas que mais gostamos porque temos medo de acontecer o mesmo? A partir daí começa o nosso teste de vida...

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    1. Rafa, ouvi muita gente me dizer que fui assaltada porque estava com o vidro aberto. Fechar ou não o vidro? Aí começa o teste de vida.

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