Trêmula

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No fundo dos olhos baços, semiabertos, lampejam faíscas de minha mãe. O fim não é acontecimento, é processo. Seguro sua mão frouxa com as unhas que minha irmã pintou de vermelho. Os dedos inertes, pintados de vermelho, não me socorrem. O corpo de minha mãe é só um tecido largado sobre ossos. Às vezes, um sorriso de lucidez, no mais, o olhar ausente para coisas que nunca saberei e o balbuciar de frases quase mudas. Num ritual lento, doloroso, vai se desligando de nós. Meu irmão está prostrado diante do fio de voz carregado de falas incompreensíveis e do olhar que nos atravessa. Inaceitável ausência da pessoa amada dentro de si mesma. Maldade de um coração que insiste contra um cérebro que praticamente se foi. Enquanto rezo para que ela também se vá, ajudo meus irmãos na obstinação de tratá-la e cuidá-la e colocar-lhe remédios na boca que nem sempre engole. Mãe dureza, mãe trator, mãe autossuficiência, mãe porrada, como engolir esta impotência que o universo lhe pede agora? Debruço-me sobre ela em massagens com cremes perfumados. Finalmente seu corpo, sempre interditado ao contato, ao carinho, está entregue. Espalho o hidratante sobre seu peito e faço movimentos circulares. Dói. Minha mão estimula a região perigosa do sentimento onde estão guardadas tantas angústias e raivas colecionadas em seus oitenta e quatro anos. Dói – ela diz. Respira fundo – eu digo. Meu fundo está raso – balbucia tristemente lúcida. Dói em mim também. Me defendo com expressões exageradas de bem estar que pretendem contagiá-la. Reage irritada, cheia de fastio. Porque esta é ela: crua, sem arestas. Quer levantar mamãe? Quer suco mamãe? Quer que apague a luz mamãe? Não responde. Não tem voz. E responder não vale o esforço. Desvia o olhar para o nada, que parece ter se tornado a sua vida, e escapa, e dorme. Felizmente dorme quase o tempo todo. Às vezes leio para ela, para vê-la relaxar e seguir em direção ao sono, a um sonho, talvez. E vejo cada vez mais perto o momento de deixá-la: voltar para a vida que escolhi com firmeza levar longe dela. Alívio e tristeza misturados nos meus olhos. Logo terei de dar um adeus que valha como definitivo. Vou repetindo para nós duas a toada calmante, enquanto deslizo rumo a este adeus: relaxa, confia, estaremos sempre juntas, o amor é nosso espaço e nosso tempo, não tenha medo. Mas hoje, enquanto os netos cantavam para ela ao pé da cama, desabalou num choro infinito.   Fui chamada para acudir. Fez menção de dizer algo. O violão se calou e ouvi minha mãe pronunciar com esforço, mas nitidamente, estas palavras molhadas, definitivas, transformadoras, esperadas: eu amo vocês.  Não aconteceu cientificamente, mas tenho certeza absoluta que uma luz branca, avassaladora, invadiu o quarto nesta hora. E lavou todos nós feito cachoeira. Os que estavam e os que não estavam. E cada pedaço encardido de sentimento que ficou dobrado, esquecido no fundo do armário, cada mancha de dor, foi alvejada.  Pelo menos nos corações abertos. E assim mamãe me libertou e me pôs de novo na estrada de ir embora. Daqui a poucas horas vou beijar muitas vezes seu rosto amortecido e agradecer quem, na aridez possível, só me fez crescer. E vou em busca de um avião que me leve: trêmula mas inteira.
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Comentários

  1. Mto triste, mas mto lindo.
    Momento mto difícil esse, né, Nanna?
    Mas todos temos que passar por isso um dia.
    Bjo e força
    Sylvia Manzano

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  2. fiquei sem palavras, mas queria dizer que li, e que recebi um pouco da luz branca que extravasou para fora da tela do computador...

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  3. Nanninha,
    Lindo e triste, mas retratou a mãe que nos coube a cada fase da vida. Como é difícil essa, sempre certa e inadmissível despedida.
    Bj grande e muita força a vc, irmãos e seu pai,
    Gatolina

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  4. Estou sob o efeito dessa luz até hoje.
    O texto é emocionante, estou em lágrimas, não consigo comentar...
    Beijo!!!

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  5. Nanna, este momento lhe deu uma inspiração mágica. Nunca escreveu tão bem como hoje. Vc está fazendo a coisa certa:ajudando-a a acabar de cumprir seu período. Fiquem vocês duas com DEUS. Ele está no comando.

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  6. Chico Neto13/1/13 12:02

    Lágrimas... tristeza... dor... e muito amor por e para você, amada amiga querida. Beijo você e a todos os amados de seu coração.

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  7. ...é muito amor, ...imenso, infinito..., lava a alma e a leva com plenitude de si! Amo você Nanna!
    Bjo
    Lili

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  8. O passado assumiu que e passado e TUDO virou apenas um minuto.

    Fique em paz.

    Fernando Lessa

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