Dory

Gosto de desenhos animados. Gosto da esperteza de alguns criadores geniais em travestir de infância conteúdos tão profundos e significantes. Não falo de mensagens politicamente corretas em defesa do meio ambiente. Isso já virou cacoete. Falo de ir ao encontro da complexidade humana sem firulas, sem criancice, sem subestimar os pequenos com mensagens babonas e retardadas.  Tenho pensado muito em Dory, a peixinha azul do filme Procurando Nemo.  Vem à minha cabeça a cena em que ela e o peixe-palhaço foram engolidos pela baleia. Sem saída. Tantas vezes me sinto sem saída. Vejo Dory rolando divertida dentro da boca da baleia enquanto o peixe-palhaço resmunga sua tragédia, sua falta de sorte, seu fim eminente e se debate furioso contra a parede de dentes. Eu sou tantas vezes o peixe-palhaço e queria tanto ser Dory. Então as coisas pioram, claro. Não para Dory que está entregue ao desconhecido, mas para Marlin, o peixe-palhaço descrente. A água em que eles nadam começa baixar, vai sendo sugada para a garganta da baleia. Ela, óbvio, se entrega, ele, óbvio, se agarra a algo. Nós, descrentes, nos acostumamos às prisões, preferimos nos agarrar às grades conhecidas da cela, aterrorizados pelo novo.  Melhor ter o controle, mesmo na dor, do que soltar as mãos e deixar a água nos levar. Então Dory pede a Marlin que solte, que se deixe ser sugado garganta abaixo. Ele quer dela a certeza de que nada de mal irá acontecer.  Ela não tem. Apenas confia no fluxo da vida.  Marlin então se solta, pela primeira vez, aterrorizado, rumo à morte. A morte não está depois da entrega. A morte, para os descrentes, é a entrega. Então os peixinhos são esguichados para fora da baleia que os levou exatamente ao destino que buscavam. Eu, sentada na poltrona, invejo o roteirista do filme e sua peixinha azul. Me percebo agarrada à língua da baleia, tentando escalá-la de volta, resmungando contra o universo que quer me engolir, me triturar. Convencida intelectualmente da minha estupidez, fecho os olhos e me jogo. A queda é longa e sofrida. Se eu tivesse fé no universo, seria um voo.
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Comentários

  1. Querida,
    Mergulhei nesse seu texto delicioso e saí leve e voando!
    Bjs

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  2. Nannuska, sei bem como é essa queda... Mas tenho tentado voar ultimamente, e tem dado certo. Fly baby. Luv u.

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  3. E a gente sempre aprende mais um pouquinho com estes "inocentes" desenhos...

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  4. Bem reflexiva, genial. O meu desenho favorito é Ratatoille. Achei muito criativo um rato (bichinho tão perseguido) tornar-se um chefe. Parabéns! Bjo!!!

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  5. Anônimo3/8/11 20:24

    Me diga S. Safo, quais são seus autores preferidos?

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