Meu cadinho preto
A origem da minha família mineira remonta a uma cidadezica do interior, assombrada por
conservadorismos e preconceitos, comuns às cidadezicas do interior. Terra de
fazendeiros brancos, elite branca do Brasil agrário fundada sobre os alicerces
da escravidão. Ali nasceu minha mãe, mulher forte talhada para as linhas de
frente. Carregada dos tais preconceitos herdados, já casada e com sete filhos,
já morando em Belo Horizonte, cuidou de me afastar dos pretos que moravam num
cortiço do lado de casa. Lembro de mim mesma estuporada de alegria dentro de
uma bacia grande de latão tomando banho com uma menininha preta. Bacia no chão,
o cortiço coletivo, colorido e sonoro me abraçando, a água morninha, o sorriso
muito branco da menina... Minha mãe me levando embora. Ali não mais, nunca
mais. Fui carregada no colo dela olhando para trás sobre seu ombro para um
mundo preto ao qual eu não pertencia. Mas carreguei o rosto redondo e brilhante
da menina da bacia. Como se a água do banho tivesse penetrado na pele e
encharcado até os ossos que já não podiam ser tão brancos. E espontaneamente, sem
escola, como se o molejo brotasse de dentro, aprendi a sambar. Os batuques
simplesmente acordavam meu corpo e o carregavam feito correnteza muito
conhecida. A melhor amiga da adolescência: filha de mãe preta. E de cá, minha
mãe incomodada. Assombrada pelas toneladas de estigmas sobre os pretos com os
quais havia crescido. Declarou guerra à minha amizade, ameaçou me tirar da
escola cara de brancos que eu certamente não estava fazendo por merecer. Ameaça
vazia pois eu tampouco me sentia parte da escola. Guerreamos feio. Ela a mulher
mais poderosa que eu já havia conhecido, temida no bairro, aquela que um dia eu
vi tirar a arma da mão de um delegado. Voltei
para a escola pública onde, concordávamos, era o meu lugar. Não abri mão da amiga
e aprendi um pouco da força de minha mãe. Então saltamos no tempo. Estou casada
e tenho 3 filhos. Meu marido convida seu amigo professor da USP e a namorada
para um churrasco em casa: pretos. A moça é mineira e vamos puxando o fio da
meada das nossas origens até chegarmos à cidadezica. A mesma de onde nossas
duas famílias partiram. Incrível encontro proporcionado pela grandeza generosa do
universo. Viemos do mesmo lugar. Começamos a tagarelar excitadas sobre os
detalhes da tal cidade, os nomes da igreja, do antigo padre, do prefeito... até
que desembocamos em um nome em comum: minha avó, sobrinha da mãe dela. Somos primas
distantes. Nos olhamos perplexas como se a cobra do destino mordesse o próprio
rabo. Somos da mesma família. Pego o telefone trêmula, com a moça na minha
frente e ligo para minha mãe em Minas que confirma com uma naturalidade
devastadora: Ah sim! Claro! É a tia Zizinha. Desligo o telefone e abraço minha
prima com uma força desproporcional à pouca intimidade que temos. Mais tarde um
teste genético redesenharia minhas raízes pretas apagadas. Raízes pretas que
minha mãe precisou amputar sem anestesia. Raízes pretas fortes que encontram outros
pontos na epiderme da árvore para renascer. Sim senhoras e senhores de todas as
cores: eu carrego um cadinho de samba, de maracatu, de umbanda, candomblé, acarajé
e vatapá nas veias sob a pele que pude dizer branca. Estou de volta na bacia de
latão, duas meninas jogando água uma na outra. No raso da fotografia vê-se uma
branca e uma preta. Na humildade dos olhos sábios não conseguimos ter ideia do
tamanho da cena.
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Para Chico, Rosa, e minha família preta Denise, Dione, Débora, Diogo e Onivlete.
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