Enquanto derretemos

Minha caixa craniana parece que vai rachar como casca de ovo cozido tamanho o calor deste sol de inverno... outono?... primavera? Ninguém sabe mais. Estou largada sob o sofá extensível feito um jacaré à beira do rio. Alcanço o controle remoto da TV e assisto um filme... dois filmes... Preciso levantar e fazer algo útil, mas só consigo boiar feito um pedaço de carne numa sopa de legumes. O ventilador soprando firme na minha cara um ar cada vez mais quente. Não sigo para o terceiro filme, me iludo de que preciso checar as mensagens do whatsapp atrás de algo importante... é só um cacoete pra que eu divague para as redes sociais e passe mais uma hora babando enquanto vozes engraçadas dublam vídeos de bichinhos fofos ou crianças famélicas e machucadas surjam em apelos desesperados da Cruz Vermelha, dos Médicos sem Fronteira, da Acnur... Maldito algoritmo que sabe da minha terrível culpa em existir deitada neste sofá extensível enquanto crianças morrem. Uma hora empurrando a tela com o dedo e chega! Ergo-me num rompante de quem ainda não desistiu da própria humanidade. Tento pensar em algo minimamente realizável. Cambaleio feito uma barata em direção à cozinha na esperança que algo pra fazer me socorra. Passo pelo vaso onde a Rosa do Deserto finalmente explodiu em flores. O que mesmo eu fui fazer na área de serviço? O cérebro meio cozido tenta alguma resposta. Varrer o chão! Sempre é bom para o bem estar do planeta varrer o chão. Varro o chão escorrendo um rio de suor pescoço abaixo e volto rastejando para o sofá extensível, o ventilador, o bafo de ar quente, na tentativa de um minúsculo prazer. Passo de novo pela Rosa do Deserto desaforada na sua primeira floração. Sou tomada pela visão de que o final da humanidade será este: pedaços de gente numa sopa de legumes cósmica enquanto se ouvem gargalhadas das Rosas do Deserto na natureza impassível que segue. Insisto na urgência em fazer algo: quem sabe compartilhar aquele vídeo sobre as queimadas que engolem pedaços fartos da Amazônia neste mesmo instante? Pego de novo o celular na esperança de não me distrair com os bichinhos dublados... mas percebo minha mão derretendo, meu braço derretendo... Tarde demais, a humanidade acabou.

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