Resta

Só me resta acreditar nas histórias que me conto e contar-me histórias amorosas e amenas sempre que possível. A aspereza está no dia, mas posso acordar e me contar a maciez da colcha, o sol nos vãos da janela de madeira, os pássaros destacados do parque cantando no telhado do vizinho. Em vez da tragédia do que não posso mudar, me pego no colo e asseguro a mim mesma que a morte não existe. Conto-me experiências de quem esteve quase lá. Olho firme dentro dos meus olhos castanhos e pergunto: quantos sinais mais você precisa? Os músculos relaxam e enfio a cabeça no meu próprio peito: eu que aprendi a me dedicar os contos de fada decorados de doçura, eu que desisti de me mover pelo pavor. Me ponho pra dormir e abro o grosso livro da compaixão cheio de narrativas que abraçam. E leio para mim mesma. A fábula da menina que tinha medo de altura mas inventou-se bailarina do vácuo. A lenda da mulher que não podia vencer e venceu-se. O conto das dores que deixaram de ser facas no peito e se tornaram broches no vestido. Tantas histórias boas para me contar com assombrações de trem fantasma e seus sustos de brinquedo. São só o que temos: as histórias que nos contamos sobre o existir. Na presença implacável da dúvida que se espalha no seu antes e no seu depois, escolha histórias amenas e amorosas e se embale nelas. Escolher as histórias que espalharemos sob nossos passos: a única coisa que nos resta.

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