De cima do salto

Ela leva o inimigo consigo, preso ao sutiã, nem precisa empecilhos, também carrega vários na bolsa: não é tão boa, não é tão talentosa, não é suficientemente magra e aquele lugar quentinho e iluminado certamente não é pra ela. Levou muito a sério a parte do borralho na história da princesa e segue achando que um homem, com um sapato que lhe sirva, vai autorizar sua realeza. E quando o sapato serve, aquele troço desconfortável de vidro, nunca fica perfeito como devia, o que reforça sua certeza de ser a impostora do castelo. Foi inoculada na infância com o vírus da menos valia e, adoecida, se esforça infinitamente mais que os irmãos machos para merecer o mesmo quinhão. Não tem culpa. Foi educada para não chamar a atenção. Se entrar embaixo do facho brilhante do holofote, sabe lá Deus que desgraça irá autorizar. Guarda memórias ancestrais de irmãs curandeiras sendo queimadas vivas  e outras atacadas porque manifestaram alguma sensualidade ainda que inconsciente. Sofre do pavor de ser exibida. Foi catequizada com sucesso na ladainha de que mulheres que se mostram são violentadas, se tornam objetos, merecem o pior. Então cuida para fazer a força máxima com o alarde mínimo. E está exausta, como deveria estar. Mas dizem que tem ruminado ideias mais doces... Dizem que tem cutucado as companheiras próximas, desconfiada do próprio cansaço... Dizem que anda suspeitando dos contos de fada da cultura... Dizem que está para subir no salto, não do sapatinho de vidro, mas da autoestima. Dizem e eu escuto louca para acordar.

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