Abismo 6

Hoje vamos falar sobre janelas. Sim, a aula seria sobre figuras de linguagem mas acontecimentos recentes na vida deste mestre tornaram urgente que eu falasse a vocês, nesta aula à distância, sobre janelas. Esta aqui é uma janela aberta no seu computador, no seu celular, um buraco no ciberespaço através do qual, aparentemente, um ser humano vivo diante de um outro aparelho te manda uma mensagem. Aparentemente por que as janelas virtuais podem ser imensamente mentirosas. Eu, por exemplo, tenho me sentido muito pouco humano e nada vivo atualmente. Mas voltemos às janelas. Elas são passagens, concordam? A janela atrás de mim, é uma passagem de luz, de ar, dos sons aborrecidos das crianças na quadra do meu prédio, dos ruídos monótonos do meu dia a dia que aparentemente não fazem diferença pra ninguém do outro lado... Quanta vida transita através deste buraco na realidade do prédio, já pensaram? Mas,  janela também pode ser uma passagem para a morte. Não pode? Se eu caminhasse agora, com firmeza, e me lançasse através daquela abertura, tendo em vista que moro no décimo-primeiro andar, poderíamos considerar a janela o começo do fim. Ou o fim teria começado antes, numa outra janela simbólica? Não dizem que os olhos são as janelas da alma? Sabem o que é uma janela para a alma, queridos alunos? É uma figura de linguagem entre outras. E eu deveria estar falando delas conforme a proposta curricular que me foi confiada. Mas falar de janelas é tão mais importante neste momento nas nossas vidas. Na minha, pelo menos, é mais importante. Por que eu olhei ontem à noite através de duas janelas castanhas, úmidas e do outro lado, onde costumava ver amor, vi um adeus. Vejam só como as metáforas podem ser as mais cruéis das figuras de linguagem. Eu quis caminhar com firmeza e me lançar dentro daquelas janelas, mas elas se fecharam depressa e definitivamente. Será que, quando nos atiramos inteiros dentro da alma de alguém, a gente também morre? Com certeza esta pergunta não cabe na nossa proposta curricular. Mesmo assim, queridos alunos, hoje eu não serei capaz de falar de figuras de linguagem mas somente de usá-las. Por que dizem que a poesia cura as dores. Dizem que a poesia é uma janela através da qual a gente se lança e cai para cima. Um abismo reverso. E eu, após tantos anos ensinando regras, achei prudente ensinar janelas. Por que a poesia, meninos e meninas, será muito mais útil à sobrevivência de vocês do que as regras. Quantas janelas passarão desapercebidas nas suas vidas até que se fechem definitivamente? Eu encerro esta aula virtual, digital, fria, com uma lição de casa valendo pontos, todos os pontos do semestre. Desliguem agora suas telas e encontrem uma janela para a alma, qualquer uma. Encontrem pelo menos uma passagem para o seu coração antes que seja trancada pelas pálpebras do adeus.  Ela está aí no quarto ao lado, no quintal, está dentro, está perdida no meio de tantas tranqueiras inúteis que juntamos. Esqueçam as regras, as provas, as notas, o reconhecimento, o pagamento no final do mês.  Vão enquanto é tempo, enquanto o amor os espera. Esta foi nossa aula de hoje sobre figuras de linguagem.
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