Abismo 4

Mais de cinquenta mil mortos. O número se liquefaz na paisagem do lado de lá da minha janela. Um pássaro voou rápido riscando o verde. Me distraio com o voo poético da ave e com o bambuzal ao fundo balançando docemente na coreografia do vento. Não. Não quero me distrair. Não posso. São mais de cinquenta mil mortos. E não chegou ao fim. Que som é esse que veio lá de fora? Serão milhares de gargantas chorando? Não, é só o riacho e sua toada monótona, os mesmos grilos e os sapos do entardecer. O número não tem som, não tem cheiro, nem olhos de medo, só algarismos mudos enfileirados e inertes como eu, acotovelada na janela de madeira, anestesiada pela poesia hipnótica do bambuzal. Deus! não é uma janela. Estou acotovelada sobre cinquenta mil corpos sem nome. Corro para fora da casa, morro acima, pra tentar, lá do topo, ver os mortos. O número não basta, o silêncio do meu isolamento não basta e a paz da paisagem, que nem sei se mereço, chega a me sufocar. Vou resfolegando na subida íngreme, forçando meus pulmões e minhas pernas, tentando morrer pelo menos um pouco. Por que isso não pode ser. Não posso deixar que o número se liquefaça na paisagem  e se confunda com o riacho nos fundos da casa e flua, flua até desaparecer impune no horizonte. Preciso despedaçar esta terrível redoma de segurança que me abraça. Mas lá do alto, da crista da montanha, só consigo ver solidão. Caem sobre mim a noite, o escuro e um frio muito maior do que qualquer inverno ousaria. E, por um segundo, eu sinto, como uma breve companhia na humanidade distante, quinhentos mil dedos gelados tamborilando sobre meus ossos. Mas logo passa e o número volta a ser um grande nada na capa de um jornal do lado de cá do abismo.
*
*
*

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Pequeno Príncipe e a Cobra

Dia bom

Ilusão