Abismo 3

Eu gosto dela. Tem umas palavras que ela fala que eu não entendo. Mas eu gosto de ouvir a voz dela e dependendo do tom eu descubro se é bom ou ruim. Tem palavra que causa confusão... Anotei duas aqui: comunismo e fascismo. Eu não sei o que é mas acho que as coisas que terminam em “ismo” não são boas, deixam todo mundo nervoso. Linha de ônibus eu sei que não é. Já procurei, aqui perto de casa não passa “747 Comunismo-Fascismo”. Não passa. Mas quando ela mistura lá com outras palavras, eu gosto de ouvir. E me esforço pra ouvir certo. Outro dia ouvi errado, muito errado. Ela falou “feminicídio”, eu achei que era uma palavra forte: “feminicídio”. E coloquei um coraçãozinho na publicação dela. Ela botou uma interrogação embaixo. Minha nossa! Meu coração
gelou. Até desliguei o celular de medo. Depois me contaram que a palavra bonita era “feminismo”. Mas o “ismo” não é mau? Eu não entendo. As palavras entram tortas nos meus ouvidos e saem faltando pedaço da minha boca. Da boca dela não... as palavras saem sempre lindas. Até “feminicídio” fica lindo. Mas já me explicaram que isso é um jeito errado de entender as palavras. Jeito de quem não tá acostumado com elas. Porque as palavras carregam muitas coisas que eu não sei. Então eu não falo nada com ela. O coraçãozinho ficou lá com a interrogação embaixo. E o silêncio ficou embaixo da interrogação. “Silêncio” é palavra que eu entendo. Silêncio é o meu jeito de estar longe, mas do lado dela. Catando as palavras esquisitas que ela joga pela janela: democracia, humanidade, dignidade, cidadania, igualdade... O que será que vai enfiado dentro de cada uma? Linha de ônibus não é com certeza, nem coisa de beber ou comer, nem planta do quintal, nem nome de gente. Eu me esforço, mas não entendo. Ela publicou, outro dia, a frase: entender é uma escada. Fez até cocega no meu ouvido: entender é uma escada.  Que medo de colocar outro coraçãozinho lá.
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