O Último Dia

Eu vivo o dia. E ele me basta. Quando veio a pandemia, eu já havia aprendido, nos solavancos da viagem, o que muitos hoje terão de engolir goela abaixo: só existe o dia. E até menos: a hora, o minuto, o instante. Mas não sejamos poéticos demais. A poesia pode ser muito mais cruel que uma ilusão. Vamos ficar com a eternidade de um dia: este dia. Estamos vivos. E é temporário como a existência da Terra e seu balé cósmico girando sobre si mesma. As urgências se dissolveram na incerteza. O universo mandou o ser humano ficar calado no seu cantinho. Eu posso ouvir o silêncio gritando lá fora. E mesmo o homem, que anda pela rua com sua máscara colorida, está silente, desanimado de falar. Ele não constrói mais com tijolos de vento seus castelos improváveis. Atrás da máscara de pano, leva a boca adormecida. Os ouvidos embutiram-se, escutam os apelos sempre protelados da alma. Porque a vida agora dura um dia, esse dia, e somos pequenos e vulneráveis. Passamos de caçador a caça. Com a morte a espreita, viver vinte e quatro horas é muito, é heroico. Porque basta um segundo de distração. E o dia tem oitenta e seis mil e quatrocentos segundos. Oitenta e seis mil e quatrocentas oportunidades para aspirar um vírus. Criatura humilhantemente básica e invisível.  Deixamos o topo da pirâmide e nos tornamos sua caça, correndo na planície em campo aberto. Lembrete de humildade colado pelo 'todo' poderoso na abóbada celeste avisando que somos parte, não somos “o dono”. Compreensão que só precisa de um segundo de lucidez, dentro de um minuto de sufoco atrás da máscara, numa hora difícil com um respirador mecânico acoplado ao rosto: somos vulneráveis, somos parte, não somos os donos e um dia, mais cedo ou mais tarde, será, de fato, o último dia. 
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