Abismo 1

Alô, gostaria de falar com a Raquel... a Raquel que deu aquela entrevista para o jornal, a que disse que o presidente é um irresponsável, mas que perdoa. A que disse que ele não faz por mal. A que disse que ele é autêntico. O importante é que ele é autêntico: ela disse. Não está? Jura? É que eu preciso desesperadamente falar com a Raquel. Não, ela não me conhece. Moro do lado de cá do abismo. Não se preocupe, não é guerra. Você daria um recado? Diga à Raquel que eu sinto muito. Só isso: diga que uma mulher esquisita ligou, uma mulher que não a conhece, que vive num bairro bacana de São Paulo, que pode ficar em isolamento na pandemia porque tem grana pra isso, que não é pobre, não é evangélica e tem horror, anote essa palavra, por gentileza, tem horror ao presidente, mandou dizer que sente muito. Sente muito o quê? Eu sinto muito por muitas coisas. Uma frase que ela disse na entrevista: no fundo estamos sozinhos, ela disse. Eu senti muito. Diga a ela que eu entendo. Um pouco. Um pouquinho. Estou do outro lado do abismo, aqui é tudo diferente, sabe? Mas, por um segundo, eu entendi. A frase ficou ecoando aqui dentro. Ecoando?... Significa que ficou acendendo e apagando como um letreiro luminoso. Desculpa, às vezes falo assim: poeticamente. É um cacoete. Cacoete? É quando a gente repete uma coisa sem conseguir controlar. Me desculpe, eu queria muito que a Raquel entendesse. Do lado de cá do abismo, até os monstros são diferentes. Mas eu entendo quando ela fala "autêntico". No eterno abandono, a gente acaba preferindo o monstro autêntico. Faz sentido. Ai, desculpa. Monstro é uma forma poética de dizer. O cacoete, de novo. Diga só que eu penso diferente, mas eu entendi, acho que entendi o que ela sente. É isso. E talvez eu ligue mais tarde. Não. Melhor não. Melhor só dar esse recado pra Raquel: que as palavras dela, feito facas, cruzaram o abismo e acertaram bem no meio do meu peito e doeu em mim também. Ai, esquece. Não diga nada não. O cacoete, de novo. Adeus e obrigada por me ouvir.
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Baseado nesta matéria de jornal: 
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/raquel-arrependida-pero/
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