A Verdade que Enoja e Seduz

Mensagem a um desconhecido amigo brasileiro do futuro, depois do tempo escuro de cloroquinas, covids-19, mitos, "Fora Bolsonaros", e outros “E daís”. Escrevo porque, após meio século de experimentar nosso país, sei que esse tempo será esquecido, assim como eu. Por isso, registrarei, enrolarei o papel com este texto, colocarei numa garrafa e lançarei ao mar do improvável esperando que ele te encontre um dia: amigo brasileiro do futuro. Porque a memória, irmão querido, é antídoto que pode salvar um povo inteiro. Quero te contar de uma reunião da equipe maior do nosso governo de hoje que, apesar de gravada,  aconteceu longe dos olhos dos brasileiros e por isso preservou algum frescor de verdade. A verdade, nesta época que vivo, tem o poder desestruturante de enojar e seduzir ao mesmo tempo. E é sobre isto que preciso desesperadamente falar com você: sobre a magia reversa do espelho. Percebe que nos vemos nele invertidos? Que nossa autoimagem é uma mentira logo de saída?  Pois então: hoje eu, minha família, meus amigos e meus inimigos estamos presos dentro deste espelho cruel que nos mostra brasileiros. E eu preciso te falar desta reunião que, por uma jogada do destino, tornou-se pública, exibida em rede nacional, nos principais canais jornalísticos da internet e da TV, expondo o presidente e seus ministros.  Meu fígado, envenenado, quer condená-los. Mas um ser etéreo em mim avisa que a única saída possível está em não julgá-los a partir da minha repulsa mas contá-los a partir da minha insuspeita sintonia. É verdade, amigo brasileiro do futuro, alguém em mim os reconhece como muito próximos. Como se eu olhasse não através do monitor do meu notebook mas pela janela da casa de um primo. Lugar que constantemente frequentei e onde todas aquelas verdades espantosas sempre estiveram enfiadas nos cantos, nas sombras  dos móveis. E os sujeitos da reunião, o falastrão ignorante, o espertinho inescrupuloso, o vaidoso exibicionista, o narcisista humilhado, o carente agressivo, a louca supostamente inofensiva, o covarde silencioso, fossem velhos conhecidos do carteado de final de semana, senão membros da família. E a reunião ministerial fosse a reedição de um churrasco na laje da minha casa onde aquelas criaturas antes boiavam dispersas no meio de muito silêncio, assuntos mais amenos e até algum amor. Não são excrescências, amigo brasileiro do futuro, não brotaram do nada, são íntimos da mesma terra onde minhas raízes me alimentam. Nossa baixa autoestima, nossa agressividade, nossa tirania, nossa mediocridade cheia de boas intenções: encarnadas. E isso os faz mortalmente genuínos, hipnóticos e sedutores. E não conseguimos isolá-los hermeticamente dos que deveriam combatê-los porque uns carregam, na cara brasileira, traços dos outros. E eu, que havia esperado com tanta avidez para assistir este vídeo, na esperança de ver nele um monstro inconteste que eu pudesse simplesmente abater com um tiro de fuzil, acordei no mesmo infernal vazio. No fel amargo das falas descabidas, entendi até o doce que alimenta meu inimigo e previ sua comemoração. Então, joguei o fuzil longe e corri aqui para escrever-lhe esta mensagem. Talvez, amigo, tenhamos nos esquecido de novo e mergulhado em algum torpor condescendente encantados pela poção mágica do herói da vez e tudo esteja nefastamente se repetindo na sua janela. Porque nós, nesses tempos tristes de agora, não soubemos ainda desvendar e desarmar a bomba. Mas suspeito que a chave está em entender o que nos une: nós e os seres nefastos da reunião. O que nos liga e não o que nos separa.  Porque sempre haverá monstros carnívoros nadando nas correntezas profundas, mas se eles chegam à superfície é porque passagens  foram abertas coletivamente, por anos a fio e, principalmente porque, no espelho invertido, todos precisamos nos ver. Beijo a mensagem e lanço a garrafa no impermanente esperando que você, amigo brasileiro do futuro, seja muito maior do que nós fomos.
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