O Casaco Morto

Photo of freediver Hanli Prinsloo by Annelie Pompe

É final de ano e tenho comichões de me livrar de coisas. Elas me assombram dentro do meu closet. Um casaco de couro que nunca usei vive ali morto em um cabide. Lindo, não posso doá-lo. Um dia será usado com certeza, numa ocasião especial, meu apego repete apavorado sempre que decido livrar-me dele. Nunca será usado! Berra minha alma incomodada com as dezenas de cabides pairando sobre as seis prateleiras de sapatos. Quantos pentes, escovas, quantas presilhas de cabelo, quantos frascos de perfume, quantos brincos, lingeries, bolsas, echarpes coloridas preciso para não ser? Que me dizem estes objetos sem propósito do meu propósito disperso em objetos? Coisas pra guardar, coisas pra limpar, coisas pra cuidar, tecidos, metais, borrachas, inertes, mortos, que me dizem? Falam da minha essência perdida no excesso de nada, da minha falta de básico e da minha insistência em chamar espaço de buraco. Esta ausência de mim que enfeito e um dia enfiarei no lindo casaco de couro que seguirá vazio. Vou buscar uma sacola grande onde caibam minhas muitas neuroses que produzem casacos mortos em cabides no armário. É final de ano e vou enchê-la com minhas cascas inúteis, minhas mentiras, minhas muletas e aquelas roupas que simplesmente não me cabem mais. Vou catar na sapateira aquele fantasma do passado agarrado à bota de cano alto que hoje aperta meu calcanhar e dizer: siga. Outra mulher calçará a bota e dançará com ela danças que não são mais minhas. E terei menos coisas e mais espaços. E sentirei o medo de que seja pouco. De que o meu suficiente seja pouco. E que me falte distração na hora da dor. O casaco de couro... A bota de cano alto... A boia no oceano...  Tarde demais. Só me restará a profundeza imensa do essencial. É final de ano e busco no cabide vazio, urgentemente, o meu eterno.
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