O Bólido e a Borboleta

A seta incisiva, na placa verde, aponta São Paulo. Tentei encontrar companhia para a viagem de sete horas de carro, não foi possível: o universo havia escrito no livro que era a vez de viajar só. A estrada, e suas pistas deitadas na minha frente, não me levará a São Paulo. Sequer existe um carro, meu corpo está fundido à máquina. Viajo numa metáfora do meu destino e acelero... 160 quilômetros por hora no tapete de asfalto. A música bem alto e só a voz masculina do Waze vez ou outra me alertando sobre radares. Existe algo premonitório ali, algo a caminho que não é São Paulo. Enquanto o carro voa, eu me encolho devagar e me acomodo dentro de uma caverna interna. Escorrego cada vez mais sem lastros para dentro de mim, para o devir. Vou me desapegando da realidade e seu cheiro de passado. Já não me reconheço no que era. Uma borboleta cruza a rodovia atarantada e explode tola contra o meu parabrisa. Diáfana presença no curso do bólido que me leva a mim. E não tem chance contra a força do vir a ser. Hoje sou o aço que avança apesar da delicadeza do inseto. E a morte da borboleta não me dói: está em seu lugar na minha história. Matarei outras no caminho e ficará registrado nas manchas espalhadas pelo vidro. Sempre perceptíveis como as muitas marcas que carrego na pele, mas meus olhos agora estão doces de estrada. Pressinto coisas e pessoas ficando para trás ainda sem saber quais são. E realizo que, pela primeira vez, não estou em fuga: os monstros deixaram o retrovisor. Não corro mais de ré. Uma nova fase se cumpriu no jogo invisível do misterioso existir. Simplesmente acabou. E não há mais carro que se demore atravancando a pista à minha frente. Dou seta, acelero... desaparecem como neblina. A felicidade cruzada sobre meu peito é meu cinto de segurança, meu banco é a paz que acreditei que havia.  Uma curva revela os espigões da cidade e suas dores e perguntas que me esperam. Armo a seta para a esquerda e piso fundo.
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