O Céu dos Outros

Dia chuvoso. Na cidade pequena, da igreja pequena, saem famílias, casais, crianças, jovens... É como
se olhasse para um outro tempo. Não vivo mais nesse tempo. Não tenho mais esta relação com  Deus, família, casamento. Estou do outro lado da rua observando o sorriso desta gente que eu poderia chamar de conservadores. Não vou fazê-lo. Se usasse para medi-los a minha régua de hoje poderia ser seduzida a transformá-los em caretas, anacrônicos, superados, reacionários, antiquados... e seria até capaz de odiá-los com o tempo. Fixo minha atenção no sorriso da menina de saia e cabelos compridos. Ela me vê e sorri mais largo ainda: aquela aceitação ilimitada dos que ainda não se conhecem. Não trisco a mão na minha régua. Quero seguir amando todos eles com seus limites que para mim não fazem mais sentido. Porque estão felizes do outro lado da rua que talvez na verdade seja um abismo mas por cima do qual o sorriso da menina atravessa. Ela não sabe que sou cercada de pessoas muito diferentes: meninas que se casam com meninas, casais que vivem em casas separadas, uma menina que era menino até o ano passado, outra que não quis casar nem ter filhos, dois meninos e uma menina que se namoram, um homem que nunca quis ter namorado nem namorada, dois homens que adotaram um menino... E talvez ela não saiba que eles riem o mesmo sorriso dela quando estão felizes. Fico pensando que se um dia ela estivesse do outro lado da rua e pudesse vê-los distraídos num momento de felicidade, tão gentis, amorosos, compassivos, generosos, tão simplesmente humanos como ela... sorriria como agora. E não trisco na minha régua: nada do que aprendi ou vivi me autoriza diminuir a menina e os seus enquanto são só felicidade. Escolho guardar o sorriso e jogar o rótulo fora. Caminho pela estrada de barro calçada com pedrinhas de amor. E lá longe o sino da igreja repica sim, sim, sim...
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