No Buraco

Nós fazemos arte no buraco. Escuro. No escuro da falta de grana, da falta de importância. No país escuro onde senhores Cartolas precisam lavar carro no posto de gasolina para não morrerem de fome. Nós somos seres estranhos do buraco. Fascinados por uma luzinha que vem lá de cima, cada vez mais distante do chão que afunda. Miragem luminosa chamada patrocínio daquela grande empresa que te pergunta se a sua peça tem ator famoso. No país escuro onde uma bunda bem cuidada te faz famoso. No escuro do raciocínio mercadológico onde tudo existe para vender e vender e vender mais e dar lucro. Onde o furor mercadológico transformou a arte numa puta chamada entretenimento que anda com seringas e mais seringas de morfina na bolsa oferecendo aos homens uns momentos de torpor e alienação dentro do curral.  Onde pensar é chato e ter é obrigatório. Onde almas vêm com preço e muitas estão, francamente, em liquidação. Nós fazemos arte no buraco dentro deste buraco. Quase invisíveis. Descartáveis como tudo que a superfície hiperativa abandona nos vãos do planeta. Insistentes, completamente desconectados do imperativo mercadológico que já decretou nossa inutilidade. Ofensivos, até, perante os eficientes, os especialistas em dar à máquina produtiva mais e mais e mais do ela quer. Insanas cigarras cantando até explodir.  Então venho hoje para seus olhos contar que nós, nesta estúpida obstinação, cumprimos um papel fundamental na vida do homem. Cuidamos da existência do buraco, da dúvida, do vazio, do inviável, do surpreendente, do avesso, do fundo, do inexplicável, do que não cabe no gráfico. Guardamos, como soldados, a poesia do macaco pelado que fez um rabisco inútil naquela parede da caverna. E não era bicho mais. Guardamos anonimamente a chave deste tesouro. Anonimamente. Não somos famosos, somos vidro sem rótulo. Guardamos este haikai frágil, com um amor mercadologicamente injustificável, no fundo deste buraco escuro, amparados somente pela fé romântica de que é nas covas que se põe pra dormir as sementes.
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