Os Estupros

Sapho - Charles August Mengin
Há muitas formas de tornar-te mansa e tornar-te distraída das tuas valiosas entranhas. Há muitas formas invisíveis de ocupar-te com as vontades do outro e alienar-te do prazer que deverias estar buscando agora, já, neste momento. Uma delas é fazer-te objeto e não sujeito. Cedo, outra mulher te repassa o fardo: tua existência só valerá quando servires a outro. Chamam isto de formas doces como casamento e maternidade. E tu, por mais que estudes e pelejes e trabalhes e cintiles, ficas crente de que serás menor sem um casamento e um filho. Deves, então, desde cedo, ocupar-te da obrigação de ser desejável e aprazível para cumprir tua meta. Este, seu mantra perpétuo, perversamente colado ao teu feminino: ser desejada, dar prazer. E vais gastar grande parte da tua vida nisto: alisando cabelos, arrancando pelos, esticando peles, passando fome, passando cremes, apertando cintas, correndo distâncias mortas, entrando nas facas. Olhando para fora numa luta infinita para tornar-te o desejo do outro. Luta que fatalmente irás perder mais cedo ou mais tarde. Não autorizada a envelhecer. Não autorizada a engordar. Não autorizada a existir de cara limpa. Ameaçada pela fêmea mais jovem e mais desejável que é só mais uma correndo na esteira que não leva a lugar nenhum. Prisioneira de um corpo que deve ser controlado, formatado e usado como isca e que tu, muitas vezes odeia e raras acaricia. Culpada por seres e por não seres objeto do desejo. Culpada por mostrares demais os peitos ou por nunca usares vestido. Culpada por não teres casado, não teres parido, metas que te convenceram serem naturais e indiscutíveis. Ah, minha doce e muito querida menina: há muitas formas de tornar-te mansa e distraída do teu real querer. Uma delas é invalidar tua solidão. Fazer dela uma pena da qual precisas ser salva por um amor, por um filho. E então te esforças e és boa garota e és premiada com o amor e o filho, mas despencas do falso céu quando entendes: amores se vão, filhos se vão, o corpo desejável se vai. Segues sozinha. E eu te peço, pelas deusas, não te distraias tanto. Senão acabas te embrenhando nalguma vereda onde toda uma sociedade se achará no direito de violentar-te mais uma vez. E te dirão que não aconteceria se não andasses distraída. E será e não será verdade.
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Comentários

  1. Muito belo esse texto. Parabéns. Compartilhei

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  2. Texto que gostaria de ter escrito um dia...maravilhoso Srta Safo!

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