Eu, você e o Cunha de noite

Amigo, não vou facilitar as coisas pra você assim como não foi fácil pra mim escolher um lado. Então, se não quer provocar suas crenças, pare de ler já. Estou disposta a desestabilizar nossa amizade. Estou disposta a tudo. Para começar, vamos tirar os rótulos do coldre e colocar no chão. Nenhum de nós dois é vil. Isto você sabe: é o que mantem íntegro o nosso vínculo. Fizemos escolhas e teremos que justificá-las no futuro, ou podemos esquecê-las, o que tem sido mais comum neste país. Eu gosto de você porque sei que você dirá: escolhi a justiça, a correção, a mudança, a luz. E eu acredito. Mas não gosto de você quando parece que não posso escolher o mesmo sem estar do seu lado. Nesta hora te acho apenas infantil. Não diria isto a um inimigo. Não perderia este tempo. Isto supera a política: no dia a dia sua mãe, seu namorado, sua filha, estarão certos mesmo estando do outro lado e você não estará errado. A morte da maturidade acontece quando o fluxo se interrompe entre os dois lados certos da história. Morre um pouco cada lado na solidez fria do apego. No dia 17 de abril de 2016 fomos brasileiros de lados opostos do muro. Você olhou pra mim incrédulo e me chamou de inocente, alienada, romântica. Você gosta de mim, não deu conta de me chamar de escrota, ou me jogar na cova comum dos desonestos como fez com outros que até ontem admirava. E agora, talvez, este gostar se perca em definitivo. Por que acredito que os monstros que te assombram no palco imundo da política brasileira dormem abraçados à sua cintura à noite. Aconchegados. Têm guarida na sua crença de que tudo vale em nome do que você acredita. Não foi assim que este governo se fez? Eu te vi aplaudindo manobras do seu herói para ganhar a guerra que você acha ser a conquista do bem. Acorda: não se conquista o bem com manobras egoístas do meu herói. Eu te vi fechar os olhos à homofobia em nome da vitória sobre o mal. Lembra: muitos alemães se calaram no começo, inclusive judeus, por acharem que não seriam o alvo do Führer. Eu te vi ser intolerante com o diferente. Oi?? Não só gays, negros e mulheres merecem a tolerância. Não basta ser um conceito correto e talvez ainda seja pra você um sentimento difícil de suportar ou mesmo idiota e inútil porque te obriga a refrear seu ódio, sua sede de extravasar esta insatisfação que entendo e é justificada. Mas vejo você, que foi vítima de tantas intolerâncias, defendendo e incensando a sua, e criticando estratagemas do inimigo e aplaudindo os do seu time, sem entender que é mais do mesmo. E você tem razão: eu não escolhi o lado dos justos, dos impolutos, dos honestos, não tenho como fazer esta escolha. E só posso te esclarecer minha opção de uma forma que doerá mais, mas talvez ainda seja uma semente. Entendo o mal como parte inerente do jogo, não tenho a ilusão de eliminá-lo, mas fiz uma lista do mal com o qual consigo lidar. Posso suportar um mau governo e, no meio de uma turba indiscriminada de ladrões, entendi que preciso negociar com alguns deles. Não desaparecerão feito neblina, e estão sempre se reeditando num sistema adoecido que precisa ser reformado. Mas não consigo acolher a manipulação explícita, o escárnio premiado, o preconceito escarrado, a violência vazia, a esperteza fominha, a chantagem cordial, a psicopatia sorridente. Nada é novo:  há muito tempo negociamos com monstros para seguir em frente, você, eu, nossos heróis, nossos líderes. Fechamos os olhos às pequenas maldades, aos pequenos delitos, e manobramos dentro da vaga apertada da mediocridade. Os fins justificando os meios. E chegamos até a acreditar que dava pra ir levando assim enquanto a economia ia bem. A única diferença é que agora está explícito. E eu te desejo sorte com os monstros que você escolheu para nós. Neles há uma centena de sinais dos tempos que vão além deste nosso desejo comum de justiça. E eu sei que o jogo não acaba aqui e que você estará atento. Por isso, amigo, te escrevo, me escrevo, para que de noite, na cama, possamos olhar com firmeza nos olhos deste crápula e assumir: sim, ainda que por um momento e com um fim, eu te escolhi. Você é mau e é meu. Ai, não seremos tão legais, nós dois, mais ainda seremos amigos.
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