O Estupro - Última Parte

Autor Desconhecido
(continuação do post anterior)

A brecha na represa rápida abria seus lábios. A borboleta do amor pousa onde não se imagina. Os braços do homem em cruz comprimindo suas costas, a boca presa à sua, a enlouquecedora fricção das peles, rasgaram em definitivo a barragem do medo e trouxeram do fundo escuro do rio uma explosão de energia.  A onda de prazer avançou sobre o corpo de Cecília feito tsunami encharcando cada célula. Instintivamente, ela se agarrou ao estranho como a uma âncora. Seu grito espatifou-se nas paredes e um coração bateu louco em cada ouvido.   
                       
Pouco depois um gemido, o corpo dele estremeceu sobre o dela, e estava feito. O líquido quente espalhou-se, lançou espermatozoides no espaço, avançou pelas trompas, molhou o rosto do útero, lavou a alma, fecundou o inconsciente, engravidou o futuro. O corpo dele sobre o dela tornou-se subitamente frágil. Os músculos reagindo em espasmos pequenos e dispersos, estertores do gozo. Cecília apertou os braços levemente contra as costas do homem, como se pesasse sobre ela um velho conhecido. Ameaçado pelo gesto de carinho, ele desvencilhou-se do abraço e retirou-se trêmulo de dentro dela. Cecília sentiu um frio ruim e uma vontade absurda de que ele continuasse ali. Duas gotas frias saltaram dos olhos do estranho para a boca de Cecília, gotas salgadas de tristeza. Ele se levantou e foi vestindo as roupas nela. Outras gotas frias continuaram caindo sobre o seu corpo. Chorava mudo. Tornou a juntar-lhe os pulsos, agora diante do peito, e amarrou-os. De repente as mãos dele desapareceram. Cecília soube que estava acabado. 

Novamente o lenço com éter, a inconsciência. Quando acordou, era começo de madrugada do dia seguinte. Estava deitada no banco de uma praça deserta e, não fosse pela umidade entre suas pernas, podia jurar que acordava de um sonho. Sentiu-se confusa como se tivessem trocado sua vida por um modelo novo com o qual ainda não sabia lidar. Custou a reconhecer o lugar e entender que não era longe de casa. Saiu caminhando pela rua. Encontrou um casal de namorados que passou por ela sem lhe dar a mínima atenção.  O mundo estava completamente alheio à sua história, não havia marcas, rastros, sinais, só aquela umidade entre as pernas. Maria Cecília andou automática, como um zumbi, até sua casa. Ao chegar diante do portão, percebeu que estava com a bolsa e a chave continuava no mesmo lugar.  Entrou e não quis correr para o chuveiro e lavar a única certeza que lhe restava. Foi direto para sua cama onde se esparramou e chorou como um bebê recém-nascido. Nem acendeu as luzes. Chorou no escuro até se esgotar. De repente o olhar perdido acordou para uma luzinha vermelha que piscava insistentemente. Havia um bendito recado na secretária eletrônica para que ela não estivesse tão mortalmente só naquela hora. Sentiu como nunca a falta de alguém, talvez da mãe que morrera tão cedo. Estendeu o braço em busca de companhia e acionou a secretária. A voz firme do terapeuta surgiu no alto-falante perguntando por que ela havia faltado à sessão. Devia estar mesmo preocupado: depois de cinco anos de análise, era a primeira vez que faltava. Cecília pegou o telefone e ligou. Do outro lado, a gravação avisou que não havia ninguém disponível. Após o bip, pediu ao terapeuta que retornasse assim que possível, baixou o fone no gancho, foi até o armário de remédios, engoliu alguns ansiolíticos e apagou.

No dia seguinte, Cecília seguiu mecanicamente pelo caminho que, durante aqueles cinco anos, percorrera religiosamente às terças-feiras.  Fazia este trajeto pela última vez e sabia disto. Entregaria ao psicanalista a última pérola e enterraria a ostra em seu coração para sempre. Era como se a violência da pancada tivesse encaixado tudo no lugar. A dor não fazia mais perguntas, doía apenas.  A sensação do estranho deitado sobre seu corpo estava registrada na epiderme. Podia sentir, sem esforço, uma suave pressão ao redor dos pulsos e, por dentro, latejando, o sexo do homem para sempre desconhecido. Freud que descansasse em paz.

Cecília sentou-se no divã olhando para a parede e tentou várias vezes contar sua história. Todos os caminhos que pegava, acabavam no silêncio. A fala era inútil. Achou que pudesse dividir aquilo com alguém, não podia. Estava ali apenas para se despedir. O psicanalista agora era um homem e isto não a assustava mais nem fazia sua boca salivar.  Cortou a narrativa pelo meio e levantou-se para dizer adeus. Olhou para ele de repente, mas o doutor tinha os olhos perdidos no chão. E quando ergueu o rosto, Cecília podia jurar que lá estavam as marcas das suas unhas perto dos olhos úmidos. Assustada, desviou imediatamente o olhar para a porta. Decidiu que estava delirando, projetando, transferindo. E vai ver estava mesmo. O psicanalista devia ter-se cortado ao fazer a barba e era só. De hoje em diante, para Cecília, todos os homens carregariam aquelas marcas imaginárias, mas seriam todos inocentes.  Preferiu não olhar outra vez para o rosto dele.  Sem falar nada, saiu rápida e fechou a porta atrás de si. O terapeuta desmoronou imenso sobre a bergére cinza com o peso de sua história que nós não conhecemos. O monstro fizera o trabalho do médico, o monstro que podia até ser o próprio médico... Mas isto já é outro conto.

Fim

Comentários

  1. Adorei! Acompanhei como um "noveleiro". rs

    Ah, te mandei um e-mail. Dá uma olhada lá.

    Bj,
    Léo.

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  2. Leo querido, obrigada. Vou já te responder. Bjooo

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  3. Encantada! De uma classe e cadência incríveis.
    Beijo!!!

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