O Estupro - Penúltima Parte

(continuação do post anterior)

Pausa. Aqui é preciso contar que Maria Cecília teve muitos homens e, desde o primeiro, todos ela seduziu. Às vezes sem saber que seduzia, às vezes despudoradamente, como uma prostituta a trabalho. Muitos quiseram guardá-la, desde o primeiro, desde o pai. Mas Cecília escapou sempre entre os dedos que apertaram. A sedução era seu vício e sua jaula. Vendia-se compulsivamente aos homens, nunca se entregava. Ao lado do pai amargurado e do ator de teatro aos prantos, tantos outros remendando seus cacos depois que ela partia. Talvez eu esteja até sendo injusta. Talvez mulher nenhuma nesse mundo mereça um estupro. Mas, lá no fundo, insiste a ideia de que não havia mesmo outra forma de profundamente tê-la. Porém, é fácil filosofar com a crueldade dos autores que sempre se salvam quando é ela que está sendo violentada e não eu.

Submetida pela força, restou a Maria Cecília gritar palavrões imundos contra o desconhecido. A cada estocada violenta, ela reagia com um insulto cruel. Achou na mente um arsenal de xingamentos que nunca tinha imaginado pronunciar.  Cecília era boa com as palavras, sabia machucar. Calar-lhe a boca, ele não podia... não sem soltar-lhe o pulso, a mão, as unhas. Pura ilusão, o homem tapou a boca dela com a sua. Não foi um beijo, não exatamente.  Ele só queria abafar-lhe a gritaria, a raiva. Ao tentar fugir, a boca de Cecília deslizou sobre o sangue no seu rosto. Tinha deixado nele suas marcas. Mas as bocas voltaram a se encaixar. E encaixaram com a precisão de porca e parafuso que se pertencem.  Cecília sentiu-se cansada, um cansaço de vinte e seis anos. Dominada, submetida, pela primeira vez ela desistiu e entregou-se. Calou-se, deixou-se beijar, levar, penetrar pela vontade soberana do outro. Experimentou o inédito, o passivo absoluto que era Maria Cecília virada do avesso. Primeiro sentiu-se morta, nada sentiu. De repente um arrepio escapou das garras do medo, uma descarga mínima de prazer. O corpo respondeu. O corpo autêntico, natural, estava feliz. A felicidade do corpo não se esconde, não se controla. Ela acha sempre suas brechas entre as imposturas da razão. Os bicos dos seus seios falaram de uma verdade assustadora. Os lábios mordidos ficaram mais vivos e a língua quis responder àquela outra invasora, estrangeira. As pernas relaxadas não eram mais empecilho. Sentia os pelos do homem deslizando sobre a pele, os músculos enrijecidos, o órgão carnoso, macio, passeando entre as suas pernas, mergulhando entre os pelos pubianos, sua piscina negra.  Tentou recuperar o terror, a indignação, o ódio. Tolice. O prazer começou a vazar na pequena rachadura da represa. O estranho não era tão estranho assim. O estupro estava impossivelmente manchado de amor.

(CONTINUA)

Comentários

  1. Anônimo8/1/14 14:32

    Só vc e Clarice para escreverem sobre este tema com tanta classe...

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  2. ...na onda inspirada por Lars Von Trier, no conteúdo e quantidade de capítulos? Aguardo o desfecho! Bj

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