Eu, a madrasta

Mamãe você é má. Minha filha de sete anos me diz entre um beicinho contrariado e uma vontade de rir. Sim, eu sou má mesmo, de verdade. Ameacei jogar o fora o bichinho feito de sucata, caso ele não fosse guardado no local devido, e joguei. Dei uma ou duas chances de sobrevivência ao delicado bonequinho de papel, e como ele não saísse espontaneamente caminhando de cima da mesa de estudos e rumasse submetido para o armário de brinquedos, deitei sobre ele minhas garras poderosas de bruxa e arrastei o indefeso e impotente brinquedo para o lixo reciclável. Sou má, mas tenho consciência ambiental.  E minha filha talvez não acreditasse, mas agora não tem dúvidas: mamãe é capaz de coisas terríveis, mamãe não se comove diante dos olhos marejados da pequena e doce princesinha cor de rosa e seu brinquedo perdido. Mamãe não é mãe: ela é a madrasta má dos contos de fada, a perversa criatura com uma verruga no nariz e uma maçã envenenada entre os dedos tortos. E diante desta ameaça dentro do castelo, resta à minha filha, crescer. Colocar espaços saudáveis entre ela e eu. Livrar-se da minha perigosa sedução de mãe boa que poderia engoli-la por amor ou da minha caricatura de aceitação incondicional que não existe. E é desta constatação, creio eu, que se alimenta aquele esboço de sorriso no meio do choro. Mamãe manda sim, mamãe não tolera, mamãe impõe, mamãe não blefa, mamãe bota pra quebrar no castelo que, vocifera, é dela. E a princesinha a odeia por isso. E por isso, um dia, montará no cavalo e irá alugar um castelo próprio, eu penso.  E pra não correr o risco de dar errado, levará o sapatinho de vidro na mochila. E irá de tênis. E será livre e poderosa e terá ido além da minha maldade. Mas nada disso me importa. Bruxa não pensa no outro. Bruxa quer sua casa arrumada, seu sono respeitado, sua paz intocada, seu tempo para cuidar de si, seu silêncio quando ela está lendo.  E egoísmo de bruxa é mais forte que egoísmo de criancinha. E eu sou má. Mesmo.  Naturalmente má. E a princesinha entende. Ela também quer ser má de vez em quando.
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Comentários

  1. Respostas
    1. Pelo menos a nossa vassoura voa depois da faxina! KKKK

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  2. Anônimo6/3/13 11:52

    Guardar o sapatinho e ir de tênis... Muito bom!


    Infelizmente não poderei ir a São Paulo dia 08(meu número da sorte), mas desejo todo sucesso do mundo. Sou uma grande fã! Beijos.

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  3. Lindo...profundo e muito verdadeiro! Parabens pela lucidez das palavras! :)

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