Querido Abandonador

Bruce Mozertom
Passei muitos anos revivendo o abandono. Depois de vinte ou trinta vezes que um abandonador entra na sua sala, te trata com intimidade, te abraça e beija, te leva pra cama e te abandona, fica claro: você gosta dele. Não é obra do azar, não é macumba, não é praga de vizinha, nem complô do universo: você gosta dele. O canalha, infantil, galinha, egoísta? Impossível viver sem ele, enquanto ele dura.  Senhor mamão com açúcar e porrada. Chega com seu cilindro de oxigênio e convida para mais um mergulho no paradoxo amor e dor. Obrigatório para os viciados no abandono. Um mergulho fundo demais, que gasta tempo demais da vida e cansa. Com o tempo, abandonados contumazes aprendem o ritual do abandono: é sempre no fundo mais fundo da fossa das ilhas Marianas, onde a escuridão é mais escura e o frio mais frio, que o abandonador arranca a cara da vez e se revela. E, previsivelmente, desaparece com sua lanterna, seu oxigênio, seu abraço escorregadio, suas palavras vagas que talvez fossem amor. O abandonado ficou só com a fúria de se descobrir de volta ali. Fugiu tanto que deu a volta completa e entrou pela outra porta da armadilha. Eu era esta.  E quando acordava de novo encarcerada no vazio, me sentia estúpida, incapaz de cuidar de mim mesma, lixo submarino, consumidora inútil de terapia. A cabeça hipertrofiada de fórmulas de felicidade impossíveis de implantar. Cabeça pesada de crenças que só me ancoravam ao fundo. Até que um dia, depois de muita conversa com a esfinge, realizei, como um murro no estômago, a razão de voltar ali. Retorno ao amor basal, vital, primeiro.  Amor impossível de abrir mão fosse ele como fosse. Amor que ensinou como o amor é. Amor com porrada e abandono que eu aprendi. E estava tudo certo. Porque, se amor não fosse aquilo, eu teria de arrancar dolorosamente uma grossa pilastra da minha casa. Estranho compromisso com os meus, estranha forma de pertencer.  Revelado o enigma, a esfinge me deixou seguir e os abandonadores puderam descansar de mim.  Vieram outros me ensinar outras coisas sobre o amor. E sigo estudando nesta lousa que o outro é. Não largo mais minha mão e passo longas e longas horas boiando na superfície. Lá a solidão tem sol. 
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Comentários

  1. safo?-rs.bjos em seu coração, minha linda, vejo que não és mais aquela criança e evoluiu com suas certezas e incertezas.lhe desejo muitas felicidades e paz!

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    Respostas
    1. Paulo Augusto? Ai Paulo, eu ainda sou aquela criança sim. Acredite. E seja bem vindo.

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