A Malta

Um dia, o diretor de uma escola de teatro me disse, medindo meu idealismo juvenil, que chegaria o tempo em que eu curvaria a cabeça e me integraria à malta. Minha cabeça, aliás,  andava bastante erguida pela visão de um regime militar que escoava pelo ralo da história, pelo frisson das multidões inflamadas nos comícios por eleições diretas. Eu era Joana D'arc. E ele, pobre tirano, resolvera barrar a entrada na escola de desafetos que viessem ameaçar a estabilidade do seu reino e incomodar seus pares com versões dos fatos que definitivamente não interessavam. Machucado pelo meu olhar de desprezo, rogou sobre mim esta praga de uma maturidade amarga. Um dia, exausta e decepcionada, eu diluiria meu inconformismo feito Cibalena na lama geral do poder, e me integraria, e me tornaria lama, como todos, vencida, subjugada, pelo inevitável destino de Don Quixote. Uma estrada longa me levou deste momento ao dia em que conheci José Dirceu, Lula, Gushiken, Genoíno, Paulo Okamoto e seu pares, numa ruazinha sinuosa do bairro da Aclimação em São Paulo.  Pensando apenas no emprego urgente, empurrada pelo dom de escrever, entrei pela porta do marketing político brasileiro. Os caras do PT, meus patrões, ainda tinham aquele estilo intelectual ou operário e pareciam bem mais feios do que hoje. Eram  figuras simples, sem retoque, usavam roupas de gente pobre e sem vaidade, traziam o cabelo mal cortado, usavam barbas grotescas, alguns chegavam ao requinte de não ter dente. Pois é: dente. Vaidade era coisa da elite. A elite, aliás, estava no outro corner do ringue. Uns caras bonitos, bem vestidos e com muito dinheiro que exploravam os pobres. Aqueles caras sorridentes de quem a gente gostava quando via a propaganda política na TV. Porque propaganda é o nome do negócio. Não estamos falando da vida, mas da imagem da vida que se quer e seu poder hipnótico de direcionar a boiada. Um dia ouvi do Paulo Freire que os companheiros cabeludos e barbudos de cara fechada em fotos preto e brancas desbotadas ao som de um currículo revolucionário nos primórdios do horário eleitoral, davam medo. Eram feios demais para serem amados e intelectuais demais para serem entendidos. E vi o povão, que eles diziam defender, correr sempre para o braço forte sob o terno caro e perfumado do tal cara da elite. E eu até levei alguns barbudos para cortar o cabelo e fazer a barba. E pedi ao Lula para sorrir na foto, e insisti, e ouvi o operário feio, barbudo e sem diploma, dizer que não podia sorrir, que a situação do pais não era pra sorrir.  Mas os de lá sorriam. E então eu vi o poder com os carros alegóricos inebriantes da imprensa, do empresariado, dos ruralistas, dos religiosos, passar por cima destes caras muitas vezes. E vi o Lula chorar sozinho numa sala escura diante de um monitor de TV. E vi que eles foram aprendendo a jogar o jogo. E foram mudando. E botaram um terno no Lula, que no começo, não ficou bom. O Lula não tem pescoço. Mas eles queriam acertar. E chamaram um puta publicitário, e um estilista, e um maquiador, e um cabeleireiro,  e pagaram o preço exigido para entrar na festa da mídia. Que é caro pra burro. Ficar bonito em campanha política exige muita grana. Eles arrumaram. O Lula ficou lindo dentro do terno. E o povão gostou. Eles estavam quase lá, e os deslizes, as incoerências, começaram a aparecer. Afinal, eles não eram os mesmos, certo? Se fossem, nós não votaríamos neles. Vamos deixar a hipocrisia um minuto no cabide: fazer campanha política é mentir, obrigatoriamente, porque é preciso dizer o que a massa espera. Falar a verdade é burrice. E mais do que chegar ao céu, eles queriam chegar lá. No poder. E chegaram. Jogando o jogo sujo e podre da política brasileira. E sujaram a mão sem dó comprando, eles também, como outros antes compraram: reeleição, aprovação de projeto, apoio em votação, silêncio, oscambau. Não vamos pegar a hipocrisia ainda: os outros não compraram? Dá pra não comprar? Mas os ex-intelectuais, ex-operários, ex-pobres-feios-barbudos ficaram tão a vontade no trono que foram ironicamente pegos. Porque junto com eles o Brasil também mudou, cansou, se encheu, talvez chegou no limite. E eles mereciam. Porque não eram a elite. Eram aqueles caras lá da ruazinha da Aclimação e não podiam, estes caras especificamente não podiam ter se integrado à lama. Eu não me integrei à lama. Sujo as patas de vez em quando um pouquinho como todo ser humano: o diretor da escola de teatro pode engolir a sua praga. Mas deixa eu te dizer para que você não me admire demais: eu não estive lá, no poder, sequer numa direção de escola. Eu ocupo a poltrona confortável dos espectadores. E da minha poltrona eu vejo, assombrada, que estes homens que conheci de perto não eram maus. Que bom seria se eu tomasse para mim o poder e eles fossem maus. 

Para Celso Daniel, homem grande e bom e este insuportável silêncio.
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Comentários

  1. Não estou mais entendendo o que vc escreve e fico angustiada com isso.
    você está acreditando no mensalão, é isso?
    Mensalão como uma quantia paga mensalmente pra que os projetos do governo fossem aprovados?
    É isso.
    POis qdo o Lula fez aquelas alianças que todos falaram tanto, foi exatamente pra não precisar comprar voto, pois tinha folga suficiente na câmara e no senado.
    E tb pq se há uma coisa que Lula & cia sabem fazer é dialogar, negociar, convencer.
    A oposição e a mídia pegaram exatamente na coisa que o PT mais sabe fazer.
    Parece que não se conformaram com a facilidade que as primeiras reformas foram feitas e que traziam a nu, a incompetência deles.
    E inventaram toda essa história sórdida, pra tentar derrubar o governo e até hoje tentam fazer isso de todas as formas possíveis e imagináveis.
    Sem sucesso e as eleições que vem aí, estão provando isso, o PT está muito bem de voto e Serra saindo do páreo, espero que para sempre.
    Bom, não sei.
    Talvez eu nem tenha escrito o que você disse, talvez seja um mal entendido.
    Tomara.

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    1. Sylvia querida, veja em todos os textos que este espaço é o lugar da sombra. Esta é a proposta. A minha sombra. A sua. A do José Dirceu. A coisa que menos me interessa no mundo é julgar e condenar ou salvar. Quero acolher a sombra e não transformá-la em luz para me sentir em paz. Estou em paz, pelo menos grande parte do tempo, com as sombras. Trabalhei muitos anos com marketing político para o PT e para o PSDB. Mas este não é o espaço da política onde precisamos criar santos ou monstros. Safo é o SPA das sombras. Que bom que nossos textos possam estar juntos nesta página. Beijo bem beijado.

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    2. Depois de tudo que disse, dizer que esse não é o lugar da política, é um contra senso.
      Bom, achei vc moralista e não vou escrever aqui por um tempo.
      Vou ler, mas não direi mais nd, ok?
      Beijo.

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    3. Vê Sylvia, esta é a minha sombra de acordo com os seus olhos. Que bom que você viu mas ficou. Beijo.

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  2. Safo por vezes serás incompreendida assim como o ex-prisioneiro do Mito da Caverna de Platão, onde ao regressar para o interior da caverna na intensão de libertar seus colegas acorrentados, foi considerado louco! Explicando-lhes que as sombras eram ilusão projetadas pela fogueira sobre estátuas inertes! Muitas vezes é difícil sair da caverna onde as imagens (sombras) prevalecem sobre os conceitos, formando em nós, por vezes, opiniões errôneas e/ou equivocadas. Obrigada Srta. Safo, não por trazemos a luz, mas por fazermos caminhar para fora da escuridão da caverna, obrigando-nos a um esforço benéfico de adaptação da visão (ofuscamento pela luminosidade) exigindo um esforço de entender, querer saber mais e vislumbrar a realidade! E isso pode ser um processo difícil e demorado quando de fato começamos distinguir a verdade! Bjs : )

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    1. Tori, eu me surpreendo cada vez mais com o que escrevo. Não pelo estilo, não pela técnica, não pelo saber, mas pela exposição sincera que me vem e que não posso controlar. Queria poder dizer que não sou eu, que os poetas não têm biografia, como disse o Otávio Paz, mas sou eu também. Que bom que você consegue ler meu carinho.

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  3. Senhorita Safo,

    discordo de você hoje: não vejo sombras em seus textos, mas muita claridade, que, às vezes, chegam a doer os olhos...e também não vejo nada parecido com moralismo.
    Um abraço!

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    1. Obrigada, Márcia. Mas veja que a sombra não é o mal, é o oculto. Eu tenho encontrado muita luz na minha sombra. Tenho dançado muitas valsas com monstros verdes de quatro olhos e descoberto a delícia de ter em mim um monstro que dança. É na sombra que o bem e o mal se divertem juntos! Beijo grande.

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