Renda de Bilro

Sentada num café no centro velho de São Paulo, vejo o povo brasileiro que zanza por calçadas exíguas e esburacadas à minha frente. Gente feia. Bando de vira-latas.  O centro de São Paulo é um mostruário do Brasil que quero evitar. Gente burra. Comedores de programas rasos de TV cheios de violência e pornografia.  Zanzam feito baratas do lado de lá do vidro do café. A cortininha branca com rendas de bilro na janela de vidro confere um certo charme intelectual à minha observação. Gentinha. Eles são culpados da minha infelicidade. Não leem, não vão ao teatro... povinho sem educação. Por causa deles eu não posso ser a artista sensível e profunda e culta e refinada que sou. Porque os filhos da puta me ignoram, me deixam à míngua, me trocam por qualquer peituda pelada que role numa piscininha de plástico cheia de espuma. Eu que li tanto, que me preparei tanto. Graças a Deus existe esta cortininha branca de renda de bilro e esta janela grande de vidro dando um ar de Paris em tudo isso. Posso fantasiar que é só um LCD gigante mostrando um documentário cabeça sobre esta gentinha sempre miserável do Brasil. Chegam a ser engraçados de tão feios. Nem se aproximam da porta do café. Graças a Deus. Eles sabem o seu lugar... e o meu. Aliás, o meu não é aqui. Vivo aprisionada no meio deles sonhando com a Europa. Cativeiro verde e amarelo dos infernos. Faz uns cinco séculos que sonho com a Europa. Mas quando tento morar lá na Europa, eles sempre me confundem com esta gentinha e então volto envergonhada. Até lá os malditos me prejudicam. Escória do mundo. Obrigam-me a andar tensa pelas ruas porque estas caras feias deles os fazem parecer bandidos. Todos parecem bandidos aqui no centro velho de São Paulo.  Ou parentes de bandidos. Umas expressões tensas, cansadas, sofridas. Ficam tão melhores naqueles comerciais de TV na época do carnaval: pelados e sorridentes com as bundas roliças brilhando para as câmeras. Aqui, nem bunda eles têm. Só barrigas dobradas sobre as calças muito baixas na cintura. Povinho sem classe.  Povinho que vota em palhaço, que se vende por dentadura. Daqui a pouco vão desgraçar minha vida mais uma vez com sua burrice eleitoral. Já avisaram que estão atrás de uma nova aberração política, um cantor de música ruim, uma atriz pornô, um anão corcunda de um programa televisivo, um representante legítimo deste circo miserável em que eles vivem para colocar lá na prefeitura da cidade.  E eu terei que suportar por quatro anos, perante o mundo educado, a vergonha de morar numa cidade governada pelo anão corcunda do programa de TV. Tudo culpa deste povinho lá fora que abomino. Linda esta cortininha branca com renda de bilro... este ar retrô... as mesinhas e cadeiras de madeira... a grande porta de vidro fechada... a imponente e tradicional faculdade de direito no canto da moldura da janela transparente e a cortininha... Com certeza tudo foi projetado por um arquiteto sensível como eu. Um abrigo, um bunker para proteger as pessoas da minha classe, do meu nível, nesta explosão de gente suja e feia e assustadora.  Se eu baixar um pouco o olhar, inclusive, a cortininha é capaz de esconder os transeuntes. Que genial. Que bom que existem pessoas nesta nossa nata intelectual e econômica que pensam em nós. Pena que precisarei sair daqui a pouco e me lançar no meio desta gente. Pena que viverei no meio deles até o final da minha vida. Pena que talvez meus filhos também sejam obrigados a viver no meio deles. Pena que cortininhas de bilro não bastem.
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Comentários

  1. Ué, será q eu entendi?
    Não dá pra vc desenhar?

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    1. Ah, minha cara, este abismo que se fez, quanto nos custa! Bjoca.

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  2. Respostas
    1. Sylvia, a proposta aqui é que o incômodo faça pensar. Honestamente, eu não estou do lado de ninguém. Se eu estivesse, tomaria atitudes que não tomo. O discurso não nos torna menos elite e acho que há muita hipocrisia nos discursos atualmente. Você quer saber se eu me reconheço neste texto: a resposta é sim. Mas já me sentei no chão da praça em frente a este café com os moradores de rua e comi com eles um dia. Eu não estou do lado, estou dentro. Beijo.

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    2. Gostei disso: "Eu não estou do lado, estou dentro."
      Vc é surpreendente e é por isso q gosto.
      tudo é tão igual esses dias.

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    3. Obrigada. É um elogio e tanto. Af!

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  3. Não me privo de te ler...
    Lembrou as primeiras páginas de "A hora da estrela", quando Clarice descreve Macabéa.
    Muito bom, dos melhores que já li aqui. Bem reflexivo.
    Beijo!

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    1. Obrigada querida. Bom saber que estamos juntas. Também adoro seus poemas. Não me deixe sem eles.

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  4. Incrível! As vezes só vendo as coisas do lado de fora (ou de dentro!!) para mapear as sensacoes que nos afetam no dia a dia. Estas as vezes tao caóticas, que se faz necessária o uso de palavras e compreensoes tão doloridas....
    Obrigada por escrever.

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    1. Bárbara mil vezes obrigada por ler. É o momento mais vivo da vida pra mim.

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  5. É, o maior problema deste texto é que talvez a maior parte de nós não entenda a ironia... talvez, a maior parte vote em senhorita safo para vereadora para que ela lance mão de algumas cortininhas de bilro para garantir que a miséria humana não entre nunca para dentro de nós...
    Fiquei bem incomodada com este... lendo e pensando: "eu não sou assim, eu não penso assim, eu não quero me proteger 'dessas pessoas'...", que mentira... que triste...
    ... esse texto tem muita coragem...

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    1. KKKK. Luísa, a ironia é uma das formas mais fantásticas de crítica que conheço. Sim, muitos amarão e outros odiarão Safo por isso sem perceber o espelho. Ainda assim o escândalo pode acordar alguém. Vale a pena.

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  6. Temos consciência da existência do belo, porque conhecemos o feio.
    Só temos consciência da existência do bem, porque conhecemos o mal.
    O Ser e o Existir, se engendram mutuamente. E para isso é preciso que os dois lados da vidraça Exista, e para Ser precisamos remover muitas vezes a conflitante cortininha de renda branca de bilro instalada na janela de nossas mentes. Bj ;)


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    1. Cortininhas abaixo Tori, encaremos a feiura em nós.

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  7. cris monti23/9/12 19:10

    Muita coragem! Coragem de ecarar o incômodo, o pequeno em nós. Absolutamente incorreta, pequena, mesquinha. Mas o feio é feio mesmo, o medíocre é medíocre mesmo, o mal pode ser muito mau...e nós, os priviligiados? não somos nada perfeitos, puros, generosos...Vemos a pequenez e ela nos incomoda fora, nos incomoda dentro. Todos nós. Besteira querer negar

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    1. Cris, um dia fui gravar com esses pobres, sem nada, moradores de rua, à noite, no centro de São Paulo e todos, absolutamente todos da equipe, tivemos medo. M-e-d-o. Medo de criança, de velho, de mulher grávida. E não temos? Também acho besteira negar.

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  8. Você é impressionante, Senhorita Safo, este texto é um soco na boca do estômago!

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  9. Obrigada querida, por vir, mesmo assim e por isso.

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