Estúpido e urgente

A gente se distrai da gente. Basta saltar na nossa frente o que é realmente vital, espontâneo, cardíaco, que bate aquela vontade de ir fazer qualquer coisa estúpida do tipo arrumar uma gaveta. Ou então uma preguiça mórbida, um arroubo depressivo, ou uma maldita vontade de comer. É assim que faço com minha escritora. Vive à míngua, relegada a momentos improváveis do dia, descuidada. Carrega meu fogo eterno, mas mora no limbo da minha autoestima indisciplinada, permissiva. E é batata: basta surgir na minha frente a provocadora página em branco para que uma idiotice qualquer desande a me cutucar impiedosa, inadiável. Diante do divino em mim, me arreganho para todas as mediocridades do mundo. Ali dentro brilhando solene, límpido, direto, claro, o caminho querido. Desvio os olhos e lá vou eu me anestesiar. E a merda é que já vi, sempre vejo, eu sei. Mas não adianta, preciso tomar mais um cafezinho, comprar mais uma calça, gastar o teclado do celular, distrair-me do que de verdade poderia me arrancar da mesmice repetitiva e neurótica onde você e eu somos quase felizes. Ou apenas nos conformamos em boiar no mar coletivo da frustração. Onde tanta gente boia, que nos sentimos até confortáveis, acompanhados.  Eu sou assim. Covarde. Escrevo aos trancos, aos sopapos. Nas brechas, como um inseto. Uma barata que lambe naftalina e sorri. Sou ultratolerante às mediocridades cotidianas que me são impostas e absolutamente capaz de negligenciar meu sol. Tenho agenda para tudo e todos e até para zanzar absorta entre as prateleiras labirínticas de um hipermercado. Mas fujo, feito um criminoso de guerra de mergulhar naquilo que o coração me pede aos berros e a alma me prescreve cansada. Assim minha vida se esvai estupidamente. Eu podendo ter sido, podendo ter ido, e ficando. Enquanto escrevo isto, esmurrando o espelho, vasculho minhas gavetas atrás de uma pistola carregada. Deus me permita matar algo em mim esta noite, dormir ensanguentada e acordar realmente.
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Comentários

  1. Senhorita Safo. Safada mesmo a senhora. No máximo da sua safadeza estamos nós também nos safando.
    E torcendo o tornozelo eu vou me encaminhando prá tomar um banho de mãe no rio santo e raspar os cabelos até não sobrar mais um fio desse vil ser que nos arranca de nós mesmos para, quem sabe, saber devotar-me. Mais complicado do que ser simplesmente Safo, eu sei, mas sei que dessa nova, ó dessa, intensidade, eu não me safo tão cedo.

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