Para Letícias

Outra vez o homem errado. Letícia baixou a tampa do vaso sanitário e sentou-se aos prantos. O banheiro minúsculo do bar e o cheiro de mijo faziam aquele pé-na-bunda ainda mais decadente. Tentou segurar o choro, lá fora uma fila de mulheres esperava, mas não conseguiu. Foda-se, de vez em quando se permitia uma lamazinha básica. Sai dessa lama, Letícia. Brincava a irmã mais velha, muito bem casada mãe de família. É lama de Araxá, retrucava sorridente. Mas doía. Aos 34 anos estava cansada de não acertar. As esperanças de casamento, filhos, família escorriam entre seus dedos. Outro dia havia assistido na TV uma matéria assustadora sobre o cromossomo Y. Estaria se extinguindo, acabando. Os americanos, sempre os americanos, já estavam até fazendo um banco de ipsilons. A humanidade angustiada e auto-destrutiva cometia um suicídio genético. Em breve, pensou Letícia, seremos milhões de mulheres, milhões de espelhos solitários, milhões de buracos sem tampa, vagando desorientadas sobre a Terra. Alguém bateu na porta, Letícia já ouvia lá fora um zum-zum-zum incomodado. A verdade é que tinha apelado. No desespero dos 33 achou em Márcio Aurélio não um namorado ou um amante mas uma solução. Márcio Aurélio, técnico em computação, 23 anos, vivendo de bico, um garotão. Apesar de todas as placas em neon dizendo não, ela resolveu que ali estava o futuro pai dos seus filhos. Afinal, ele era simpático, trepava razoavelmente e gostava de crianças. Tempo perdido. E ainda precisou ouvir dele, num barzinho entupido de adolescentes, dele de quem ela nem gostava, do garotão: você é uma pessoa muito legal e eu não quero te fazer sofrer. Aaaaaaaaah! Esta frase deve estar em algum Manual Básico de Babaquismo Masculino. Começa sempre com este elogio hipócrita de quem vai te enfiar a faca segundos depois:"Você é muito legal". Legal o caralho. Bateram de novo na porta, desta vez com mais força. O boteco estava fervendo. Enxugou o rosto com o último papel higiênico do rolo. Abriu a porta e enfiou os olhos vermelhos no chão. Nestas horas cabelo grande é tudo. Escondeu-se atrás das mechas e nem viu a cara de irritação da mulherada. Precisava retocar a maquiagem. Márcio Aurélio não merecia o choro de Letícia. Márcio Aurélio não era nada. Ia deixar apenas o vazio reafirmado. O fundo do poço é isto: até a perda é pequena. Muito mais digno perder o grande amor da sua vida. Deus abençoe a maquiagem, o colírio e nossa capacidade de mentir. Maquiada, voltou para a mesa. Nem sentou-se e já ouvia dele: vamos pedir a conta? Letícia chamou o garçom e pediu outra cerveja. Empurrou o copo de suco ainda cheio para o meio da mesa, solicitou que o rapaz se retirasse e ficou só. Antes que o buraco frio a engolisse, o garçom colocou uma cerveja e um copo na sua frente. Era um rapaz até interessante, o garçom. E depois, lama por lama, talvez fosse a hora de afundar a cabeça de vez. Sorriu para o garçom que acabava de encher-lhe o copo de vidro. O rapaz retribuiu o sorriso com aquele ar de comedor de plantão. Letícia virou toda a cerveja num gole e foi baixando lentamente o rosto para dentro da úmida e primitiva lama.
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Comentários

  1. Escreve o que aconteceu com a Letícia depois? Queria que ela tivesse um final feliz... hahahahaha!

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