Apenas mais um dia até que acabe

Nunca esteve integralmente aqui. Registre-se. Sempre duvidou dos sólidos e das fórmulas. Quando criança, tentou por diversas vezes desmanchar-se no vento. Voltar ao ilimitado. Não pôde. Então inventou birras de ter nascido.  Afirmava, meio sem certeza, não ter feito a escolha. Teria sido empurrada de uma nuvem: registre-se. E como não tinha jeito, foi crescendo... Vendo o corpo crescendo. Aferrada à crença da inutilidade desse troço chamado vida. Muito mal conectada, deu pra ter umas morrenças. A alma se estranhando com a carne, fazendo ânsia de fugir. Não podendo. Tomou muitos remédios e assim ancorou melhor no planeta. Mal encaixada, registre-se, mas apta a caminhar.  Então deitou mãos às obras. O fazer: seu jeito de estar no mundo, suportá-lo. Esculpir demoradamente louva deuses em blocos de granito e assim distrair-se do humano. Fazer sem parar porque parando afundava no silêncio. E fez coisas de gente: um monte. Fez até outras gentes. Registre-se: sem nunca estar integralmente aqui. Sempre de papo com o além das coisas. Cansou muitas vezes, exauriu, quis morrer... mas já amava uns e, de novo, não pôde. Como ficar era compulsório, foi obrigada a crescer. Aprendeu a gostar de sentir a terra, o sol, o cheiro das plantas. Aprendeu a agradecer a experiência que não quis. Tentou bravamente entender e depois seguiu sem entender. Registre-se: aprendeu que boiando de costas também se vai. Perdeu-se olhando o céu e chorou grosso intuindo uma imensidão que também era ela.  Limpou as lágrimas nas mangas da camiseta e ajeitou a cabeleira branca no espelho. Tomou café e topou apenas mais um dia. Apenas mais um dia até que acabe. 

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