Meu Epitáfio


Escrevam no meu epitáfio: aqui jaz a que não foi. Não foi atriz, não foi psicóloga, não foi poeta, nem escritora, não foi consultora, nem roteirista, não foi do lar, não ficou com os filhos, não teve emprego, nem magra, nem gorda, pobre, rica. Por aqui se foi a que não escolheu nada, a que vagou entre nomenclaturas num currículo improvável, a que não pertenceu a nenhum grupo e sempre gaguejou quando lhe perguntaram “o que você faz”. Aqui jaz aquela que se chamava folha no rio abaixo. A que foi levada pelo fluxo, agarrando aqui e acolá nos ramos das margens em paradas breves, sendo lançada aos turbilhões selvagens das correntezas profundas, voltando à tona em paisagens novas, desconhecidas. Escrevam no meu epitáfio: aqui jaz a que não foi. Anônima ou famosa. A especialista em generalidades. Virou cinza e foi esparramada no céu bem por aqui. E, na despedida, não se soube dizer a que ela veio. Era pra morrer solteira, mas casou e teve filhos, era então para ser mãe, mas isolou-se na solidão da escrita, era pra ser artista, mas vendeu-se ao corporativo, era pra ter aposentadoria, mas distraiu-se escrevendo versos. E agora morreu sem que nenhum rótulo se lhe pregasse e não sabemos o que dizer dela. Mas aqui jaz, com certeza, o corpo daquela que nunca pousou com as duas patas.  A que se foi pra sempre sem nunca ter ficado. A que no final se julgou feliz. E esta é a única certeza que podemos afiançar sobre ela: no final de uma infinitude de começos estava leve e sorria. Incapaz de definir-se a si mesma, incapaz de certezas, descrente até da morte... devendo afirmações, títulos, crachás. Aqui jaz... mas, é bem possível, que não esteja.
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