O Gosto Doce de Uma Qualquer Esperança

Cansada de minha densidade habitual busco conforto na existência nefasta de um pernilongo. Não vou falar da crise brasileira, da apatia geral, do avanço da violência... Chega, meu Deus, cadê o pernilongo? Ali está, suicida, criatura inútil, pousado no teto branco. Desconheço a finalidade deste sanguessuga voador na ópera da existência. Está lá inerte, a mercê da minha raquete torra moscas. Cadê minha raquete torra moscas? Ali está ela, plenamente carregada, ferramenta banal da minha porção cruel e assassina que se regozija na eletrocução de tênues vampiros voadores. Empunho o instrumento letal e volto o olhar de novo para o teto onde o bicho misteriosamente não mais existe. Pernilongos são assim: fantasmagóricos, adeptos do desaparecer. Pior: eles leem a nossa mente. Basta que você se levante atrás de um recurso para exterminá-los e eles, que estiveram repousados naquele mesmo lugar por toda uma eternidade, somem feito um gás. Agora me resta a quase sempre infrutífera tarefa de buscá-lo no ambiente pois, como todos sabem,  pernilongos têm o poder de se teletransportar para outras dimensões. Não são como borboletas que voam daqui ali bastando procurá-las no raio de um metro do ponto do primeiro avistamento. Pernilongos desaparecem até mesmo na frente dos limitados olhos humanos. E quanto mais fixamos o olhar na tentativa de capturá-los com as retinas, maior sua capacidade sólida de desmanchar-se no ar. Talvez seja melhor eu voltar às preocupações com a crise econômica, o desgoverno brasileiro, o aumento da violência... Maldito pernilongo desaparecido! Espicho o olho na capa do jornal sobre o criado mudo onde a manchete devastadora do dia suga um restinho de ânimo que eu tinha. Aperto com força a raquete torra moscas entre os dedos e avanço rumo às zonas escuras do quarto à procura dele. Obstinada. Ainda que demore, ainda que me escape muitas vezes, vou matá-lo. E quando ouvir o estalido crepitante do seu corpo batendo na malha de aço da minha raquete mortal, experimentarei de novo a sensação de poder que me roubaram. Por um segundo terei vencido o parasita infernal que suga os adormecidos.  E verei brilhar, no breu da noite do meu quarto, a esperança de dormir em paz. É isto! É para isto que existem os pernilongos: para que esta brasileira se lembre do gosto doce de uma qualquer esperança.
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