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Mostrando postagens de junho, 2020

Abismo 5

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Morrer é mais assustador lá na zona sul onde eu trabalho. Por que, quem tem grana, se desacostuma de lidar com  a morte. Quando um sujeito é morto naquelas casas grandes, naquelas ruas largas cheias de árvore, é um escarcéu. Ou deve ser. Na verdade, nos doze anos que trabalho lá nunca mataram ninguém. Do lado de cá, onde eu moro, cantiga de ninar é sirene, tiro, gritaria noite adentro. Daí que a morte não assusta tanto. Ontem foi a prima de um, anteontem o filho de outro. Até criança morre mais fácil aqui. Se tem escarcéu quando matam criança, não dura muito, porque a gente precisa tocar a vida dos que ficaram. Não pode ficar muito tempo parado chorando. A urgência da vida faz a morte ficar pequena. Então, quando a gente do lado de lá do abismo fala em risco de vida, eu dou risada. Já disse pra minha patroa: do lado de cá é difícil tomar susto. Agora estão falando do tal vírus. Todo dia morre gente a rodo, que nem mosca. Lá na zona sul onde eu trabalho, todo mundo quietinho dentro d

Abismo 4

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Mais de cinquenta mil mortos. O número se liquefaz na paisagem do lado de lá da minha janela. Um pássaro voou rápido riscando o verde. Me distraio com o voo poético da ave e com o bambuzal ao fundo balançando docemente na coreografia do vento. Não. Não quero me distrair. Não posso. São mais de cinquenta mil mortos. E não chegou ao fim. Que som é esse que veio lá de fora? Serão milhares de gargantas chorando? Não, é só o riacho e sua toada monótona, os mesmos grilos e os sapos do entardecer. O número não tem som, não tem cheiro, nem olhos de medo, só algarismos mudos enfileirados e inertes como eu, acotovelada na janela de madeira, anestesiada pela poesia hipnótica do bambuzal. Deus! não é uma janela. Estou acotovelada sobre cinquenta mil corpos sem nome. Corro para fora da casa, morro acima, pra tentar, lá do topo, ver os mortos. O número não basta, o silêncio do meu isolamento não basta e a paz da paisagem, que nem sei se mereço, chega a me sufocar. Vou resfolegando na subida íngreme

Abismo 3

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Eu gosto dela. Tem umas palavras que ela fala que eu não entendo. Mas eu gosto de ouvir a voz dela e dependendo do tom eu descubro se é bom ou ruim. Tem palavra que causa confusão... Anotei duas aqui: comunismo e fascismo. Eu não sei o que é mas acho que as coisas que terminam em “ismo” não são boas, deixam todo mundo nervoso. Linha de ônibus eu sei que não é. Já procurei, aqui perto de casa não passa “747 Comunismo-Fascismo”. Não passa. Mas quando ela mistura lá com outras palavras, eu gosto de ouvir. E me esforço pra ouvir certo. Outro dia ouvi errado, muito errado. Ela falou “feminicídio”, eu achei que era uma palavra forte: “feminicídio”. E coloquei um coraçãozinho na publicação dela. Ela botou uma interrogação embaixo. Minha nossa! Meu coração gelou. Até desliguei o celular de medo. Depois me contaram que a palavra bonita era “feminismo”. Mas o “ismo” não é mau? Eu não entendo. As palavras entram tortas nos meus ouvidos e saem faltando pedaço da minha boca. Da boca dela não...

Abismo 2

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Com licença, eu preciso desmaiar. Onde, na sua casa, seria um bom lugar para desmaiar? Sim, aquele sofá está ótimo. Seu cachorro sempre late pro sofá daquele jeito? Eu acho que cachorros veem espíritos. Mas eu preciso mesmo é desmaiar. Seu cachorro morde? Não se preocupe, eu já desmaiei antes. Acontece sempre. Quando fico muito cheia de mundo. Quando meu corpo não consegue mais conter o mundo. E ele arrebenta. Tá vendo aqui perto do calcanhar uma fissura. É batata, não dou cinco minutos e vou explodir em luz branca. É melhor estar deitada, da última vez bati com a testa no tríptico de vidro na parede da sala e cai sobre a mesinha de centro daquele designer famoso, aquele que não importa, definitivamente não importa o nome daquele designer famoso quando se vai explodir. Seu sofá é de algum designer famoso? Você não acha que o mundo tem andado over ultimamente? Pilha de mortos e manifestação de rua: em mim não cabe. Minha empregada me disse que morrer no bairro dela é mais normal do

Vitória Seca

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Eu estou gravando esta mensagem pra você, amigo desativado, mas não vou enviar. Ainda bem que o WhatsApp tem esse recurso: gravar e apagar.  Vou apagar porque sei que seus ouvidos há muito me apagam. Me apagavam sempre que você ria com sua superioridade prática das minhas humanidades idealistas. Eu dizia que o discurso da violência encorajaria o ato da violência, que o verbo autorizava o gesto, lembra? E você retrucava que eram dramas de poeta.  E mandava tocar em frente. Pendurava no meu pescoço um crachá de alarmista paranoica e mandava tocar em frente. Me entupia de rótulos para se defender de qualquer reflexão que se colocasse entre você e seu sonho desesperado de felicidade. E eu entendo. Já fiz isso no passado, já dei meus passinhos no baile do fanatismo.  E insisti em conversar contigo justamente porque, na mesma curva fantasiosa dos mitos salvadores, eu havia capotado feio. Você, então, me pediu que parasse de namorar tragédias e te dissesse coisas boas. A curva chegando, s