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Enfim, só.

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Vem solidão sem disfarces. Estou abrindo mão das distrações...  do barulho que o outro faz, da solução que o outro não é. Sou um bicho exausto em busca de um oco. Outros carregam expectativas e promessas, eu ando vazia de entregas e esperas.  Vem solidão nesta maturidade calma. Vem  que iremos jogar cartas madrugada adentro. Vem que, enfim, tenho os braços abertos de te abraçar e deixar o outro ir. Já posso me acompanhar de palavras e cachorros e não dói a mais. Vem solidão experiente, imune à panaceia dos romantismos. Vamos tomar um chá quente ou um vinho frio catando histórias numa tela de LED luminosa. Vamos chorar as misérias humanas sentadas no sofá com todas as luzes da casa apagadas. Vamos dançar abraçadas e levemente bêbadas, desvendando a grande enganação que chamamos de realidade. Vem solidão sem fantasias de completitude, solidão pedra fundamental, solidão estruturante, original, celular. Vem que o tempo me ensinou a sua paz. Vem que já estou velha o suficiente para amar-te.

Boia

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Boia, criatura. Não salva o mundo, nem salva a si mesma. Boia. Não responde nada às esfinges, senta no chão do labirinto e esquece a saída. É tudo labirinto. Boia, criatura, que nem todo tempo é de nadar. Solta o corpo na superfície do mar. Solta a mão dos seus sustos. Quando o relaxamento é verdadeiro, a gente não afunda. Água e corpo sabem negociar na leveza a entrega sem afogamento. Boia sem nem inventar praias próximas. Acata esta hora de não ir, de não saber, de não ter, de só estar. Confia no oceano. Boia. Está tudo certo como é. Às vezes é pausa, às vezes é nada, às vezes é silêncio. Aprende a não chamar sempre e a existir quando não há escuta, não há estrada, não há porta, só há espera. Não dê braçadas, não mergulhe, deita esse corpo tenso e triste sobre o colchão de água e fecha os olhos. Nem do céu você precisa agora. Sente o balanço doce da água densa que te leva para um destino que só ela sabe. Não saiba, criatura. Tudo é beira de abismo, o meteoro pode estar a caminho ou a

A que não é

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Escolho me embebedar e escrever. Sozinha. Eu, a garrafa e a folha digital. Descarto as coisas de fazer gente feliz: o amor, os filhos, a realização profissional. Descarto. Abraço minha sina só. Escrever. Pensando bem eu deveria estar fazendo algo mais normal para uma mulher da minha idade. Não faço. Não penso. Não busco o que não tem de haver. Encho a taça e brindo comigo ao silêncio desta casa vazia. Brindo à minha coragem na solidão desta noite. Não espero. Não almejo. Encaixo a taça de vinho entre os lábios pacificados e engulo meu presente. A casa se esforça num silêncio fundo. Só o som dos meus dedos no teclado denuncia alguma vida a se cumprir. Sorvo outro gole. A embriaguez me salva de um mundo assustadoramente desinteressante. Me instalo uns metros acima da lucidez. E entendo que, de verdade, não quero mais nada. Me perdoem os que planejam, os que almejam, os que anseiam... Eu não quero mais nada. Brinco de estar quando nem existo. Brinco de coisas de fazer gente feliz e invent

Atropelada

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Hoje, no parque, fui atropelada por uma borboleta. Caminhava perdida em meus dramas diários de sobrevivente num planeta áspero quando ela veio louca e se atirou quase dentro dos meus olhos. Tomei um susto de beleza, harmonia e cores e fui arrancada daquela ruminação amarga e inútil. Ela, a borboleta, rodou em volta da minha cabeça como se quisesse garantir que eu havia recebido a mensagem. Como se alguém, lá na dimensão desconhecida que chamamos céu, a manejasse com um joystick. Rodou, rodou, passou umas três vezes diante do meu rosto e apenas quando ri de mim mesma, se foi. Posso destruir toda sua poesia e chamá-la de acaso, posso aniquilar seu poder de abrir um rasgo na realidade ilusória, posso espantá-la com a mão como se fosse apenas um inseto estúpido e atarantado. Mas não posso. Estou lá jogada no chão, atropelada, com as certezas fraturadas, sangrando arcos-íris, com as retinas vidradas num céu que eu nem tinha visto tão azul. * * *

Ser o que respira

Primeiro é preciso estar vivo Estar presente Não se voa sem um ponto de apoio Primeiro é preciso estar aqui Saber onde é aqui Perder o susto Sentar no agora Porque, senão, não tem depois Senão, quando o depois é sempre Só tem angústia Primeiro é vital ser o que respira E mais nada Estar ancorado no corpo Com as mãos sobrepostas Saber-se calor Saber-se vivo Não uma máquina de ir Não um poço de dever Um ser, apenas um ser Primeiro é preciso entender Que algo sempre permanece Que algo segue Mesmo no desespero Alguém está ali Sereno como uma rocha Ainda que falte muitas vezes Tempo pra percebê-lo Ele sabe o destino Então resiste no instante E não avança  Não dá um passo Se for arrastando a alma no asfalto.  

Redondo como a Terra

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Parafraseando Vinícius: me perdoem os chatos, mas simpatia é fundamental. Gente que não escuta, metralhadora de histórias de si mesmo, narcisos 24 horas, sofredores profissionais, pedinte que cultiva a própria ferida, buracos negros de atenção, me perdoem... mas simpatia é fundamental. Arrogantes, grosseiros, olhando o mundo como um restaurante onde todo outro é garçom, permanentemente infelizes com o atendimento, mal-humorados de plantão e seu incômodo perpétuo, me perdoem mas simpatia é fundamental. Fominhas, psicopatas sociais avançando pelo acostamento, chatos recortados do todo, da natureza, do coletivo que detonam o clima não só do jantar mas do planeta... me perdoem mas simpatia é fundamental.  Depois de tanta fome, miséria, peste, guerras e tanta evolução humana, ser chato ficou insustentável. Saiu de moda em definitivo. Seja você genial, rico, poderoso, um poço de sensibilidade, filho do dono, o dono, a vítima, seja você doente, lindo ou feio de dar dó:  acabou a permissão par

Miasmas de estimação

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Ele cria fantasmas, numa caixinha fechada na área de serviço, com cuidado extremo e comida cara. Fantasmas de estimação, raros, bem-nascidos de alguma realidade dolorosa. Ele examina, avalia, cuida de cada um sem descanso para que não percam o dom de assustar. Conhece seus bichos em detalhes obscenos.  Guarda para, quando a vida ameaçar de novo invadir a casa e o prazer apontar embaixo da porta, abrir a caixa e soltar um. Miasmas de mãe alcoólatra, pai abandonador, desamores, desvalias que gritam alto se jogando contra paredes, janelas e móveis, diante dos olhos dele capturados... Repetindo o rito da dor inaugural como num êxtase de cachaça... em contorções dramáticas que se sucedem numa estranha coreografia. Horror suspeito que é quase belo. Espetáculo estéril ao qual os amores de verdade são alérgicos. A vida se retira. E a fortaleza do trauma está salva novamente. Ele recolhe então o bichinho em sua caixa...  hipnotizado pela companhia dos fantasmas que são propriedade dele, que nun