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Mostrando postagens de dezembro, 2021

A Nave

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Ame este corpo, mas não te distraias demais com ele. É só a nave que te empresto para a viagem na dimensão concreta. É teu escafandro e não tua prisão. Veste este corpo, mas desapega do teu nariz grande, teu seio pequeno, tua falta de bunda, tuas pernas assimétricas. Eu nada sei de padrões. Bela é a casca irregular da árvore, as patas peludas do inseto, a rachadura interrompendo o arredondado da montanha. E tu não és mais nem menos que aquela fissura. Então, não te distraias demais com os formatos únicos dos teus tecidos. São bordados que faço cada vez com um ponto diferente. São a prova da minha criatividade, nada mais. Desta vez, vieste com aparência de mulher, mas já vieste de tantas formas e virás de tantas outras. Não cobre tuas curvas de dor. São só uma brincadeira que combinamos de fazer juntos no tempo em que eras tudo. Cada corpo te propõe novas histórias para viver e para contar. É só isso. Não te deixes hipnotizar pela feira de corpos que teus irmãos criaram. Eles apenas ten

Sentença de Vida

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Daqui até o fim serei a mãe torta, a mãe capenga, por conta do pedaço que me falta.  Mãe desalinhada, desenhada por Picasso, quase assustadora, com um buraco no meio. Daqui até o fim serei a mãe espatifada em muitos cacos, juntada e colada com cola colorida. Mãe mosaico com um caco faltando na beirada. Mãe manca, aleijada. Mas... daqui até o fim também serei outras, serei várias. Até a que é feliz. Serei assim apenas porque decido na minha qualidade de deus. E porque, neste buraco que me assombra, colocarei, todo dia, um punhado do amor com que piso na estrada mesmo com a perna amputada. * * *

Não mais

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Uma mulher, do alto de uma pedra, olha o mar. Ela não tem planos, ela não espera, ela não acredita mais em navios, nem em se atirar. Olha o mar porque ele existe, e só. Uma mulher, no topo de um rochedo, olha a linha do horizonte. Sabe que o oceano continua, e que, se avançar em linha reta, estará de volta a si mesma. Uma mulher navega parada sobre a pedra. Sem futuro, sem valor, sem ânsia.  Só tem de seu aquele corpo perecível recheado de alma. Um rochedo vazio olha o mar. A mulher? Dissipou-se no vento. * * *