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Mostrando postagens de junho, 2023

Redondo como a Terra

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Parafraseando Vinícius: me perdoem os chatos, mas simpatia é fundamental. Gente que não escuta, metralhadora de histórias de si mesmo, narcisos 24 horas, sofredores profissionais, pedinte que cultiva a própria ferida, buracos negros de atenção, me perdoem... mas simpatia é fundamental. Arrogantes, grosseiros, olhando o mundo como um restaurante onde todo outro é garçom, permanentemente infelizes com o atendimento, mal-humorados de plantão e seu incômodo perpétuo, me perdoem mas simpatia é fundamental. Fominhas, psicopatas sociais avançando pelo acostamento, chatos recortados do todo, da natureza, do coletivo que detonam o clima não só do jantar mas do planeta... me perdoem mas simpatia é fundamental.  Depois de tanta fome, miséria, peste, guerras e tanta evolução humana, ser chato ficou insustentável. Saiu de moda em definitivo. Seja você genial, rico, poderoso, um poço de sensibilidade, filho do dono, o dono, a vítima, seja você doente, lindo ou feio de dar dó:  acabou a permissão par

Miasmas de estimação

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Ele cria fantasmas, numa caixinha fechada na área de serviço, com cuidado extremo e comida cara. Fantasmas de estimação, raros, bem-nascidos de alguma realidade dolorosa. Ele examina, avalia, cuida de cada um sem descanso para que não percam o dom de assustar. Conhece seus bichos em detalhes obscenos.  Guarda para, quando a vida ameaçar de novo invadir a casa e o prazer apontar embaixo da porta, abrir a caixa e soltar um. Miasmas de mãe alcoólatra, pai abandonador, desamores, desvalias que gritam alto se jogando contra paredes, janelas e móveis, diante dos olhos dele capturados... Repetindo o rito da dor inaugural como num êxtase de cachaça... em contorções dramáticas que se sucedem numa estranha coreografia. Horror suspeito que é quase belo. Espetáculo estéril ao qual os amores de verdade são alérgicos. A vida se retira. E a fortaleza do trauma está salva novamente. Ele recolhe então o bichinho em sua caixa...  hipnotizado pela companhia dos fantasmas que são propriedade dele, que nun

A vida de narciso

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Pobre narciso preso no labirinto de espelhos de um parque de diversões falido. Sempre se vendo gigantesco ou minúsculo na fome do próprio reflexo. Mais um prisioneiro na caverna hipnotizado pela sombra que seu corpo projeta na parede. Incapaz de ver as flores que explodiram do caule  da buganvília, o  mosaico de nuvens que se renova todo dia no vitrô do banheiro, ocupado ad eternum com o seu eu excessivo e insuficiente. Dançando autômato em volta da sua fogueira de dores, do seu altar de vontades. Cansativo narciso em sua miopia que apaga o outro, que obriga o outro a fugir  do repetitivo espetáculo da morte à beira do lago. Pobre criança deformada pelo desamor como um tronco de árvore abraçando a grade que o cerca. Pobre narciso condenado à perene incompletude, à fome e à sede que não cessam, ao ódio àqueles que nunca o satisfazem. Buscando culpados no mundo. Cavando o chão sob os pés dos seus amores. Cultivando amantes abusáveis e foscos. Ilusoriamente rico em autoridade e poder, mas

Resta

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Só me resta acreditar nas histórias que me conto e contar-me histórias amorosas e amenas sempre que possível. A aspereza está no dia, mas posso acordar e me contar a maciez da colcha, o sol nos vãos da janela de madeira, os pássaros destacados do parque cantando no telhado do vizinho. Em vez da tragédia do que não posso mudar, me pego no colo e asseguro a mim mesma que a morte não existe. Conto-me experiências de quem esteve quase lá. Olho firme dentro dos meus olhos castanhos e pergunto: quantos sinais mais você precisa? Os músculos relaxam e enfio a cabeça no meu próprio peito: eu que aprendi a me dedicar os contos de fada decorados de doçura, eu que desisti de me mover pelo pavor. Me ponho pra dormir e abro o grosso livro da compaixão cheio de narrativas que abraçam. E leio para mim mesma. A fábula da menina que tinha medo de altura mas inventou-se bailarina do vácuo. A lenda da mulher que não podia vencer e venceu-se. O conto das dores que deixaram de ser facas no peito e se tornar

Passou

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Agora

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Uma morte muito suave

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Quando a morte vier me buscar, tomaremos um chá com limão e daremos risada de todos os medos que eu tive. Revisitarei cada um deles agora com a mão enlaçada à dela e estarão calmos, pacificados. A morte sentará paciente na cadeira à minha frente e me deixará olhar longamente o céu através de uma janela. E sob ele desbotando toda a vida concreta que pouco a pouco perderá qualquer sentido. O mundo ao meu redor terá morrido antes e só quando ela sentir que estou pronta, me envolverá num abraço amoroso. E irei ficando cada vez mais jovem, cada vez menor, até retornar àquele bebê que ganhou um planeta pra brincar. Então ela me enrolará com cuidado num manto gigantescamente suave e me embalará como boa mãe enquanto desexisto. * * Para Ana Mi. *