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Mostrando postagens de maio, 2020

Abismo 1

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Alô, gostaria de falar com a Raquel... a Raquel que deu aquela entrevista para o jornal, a que disse que o presidente é um irresponsável, mas que perdoa. A que disse que ele não faz por mal. A que disse que ele é autêntico. O importante é que ele é autêntico: ela disse. Não está? Jura? É que eu preciso desesperadamente falar com a Raquel. Não, ela não me conhece. Moro do lado de cá do abismo. Não se preocupe, não é guerra. Você daria um recado? Diga à Raquel que eu sinto muito. Só isso: diga que uma mulher esquisita ligou, uma mulher que não a conhece, que vive num bairro bacana de São Paulo, que pode ficar em isolamento na pandemia porque tem grana pra isso, que não é pobre, não é evangélica e tem horror, anote essa palavra, por gentileza, tem horror ao presidente, mandou dizer que sente muito. Sente muito o quê? Eu sinto muito por muitas coisas. Uma frase que ela disse na entrevista: no fundo estamos sozinhos, ela disse. Eu senti muito. Diga a ela que eu entendo. Um pouco. Um pouq

A Verdade que Enoja e Seduz

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Mensagem a um desconhecido amigo brasileiro do futuro, depois do tempo escuro de cloroquinas, covids-19, mitos, "Fora Bolsonaros", e outros “E daís”. Escrevo porque, após meio século de experimentar nosso país, sei que esse tempo será esquecido, assim como eu. Por isso, registrarei, enrolarei o papel com este texto, colocarei numa garrafa e lançarei ao mar do improvável esperando que ele te encontre um dia: amigo brasileiro do futuro. Porque a memória, irmão querido, é antídoto que pode salvar um povo inteiro. Quero te contar de uma reunião da equipe maior do nosso governo de hoje que, apesar de gravada,  aconteceu longe dos olhos dos brasileiros e por isso preservou algum frescor de verdade. A verdade, nesta época que vivo, tem o poder desestruturante de enojar e seduzir ao mesmo tempo. E é sobre isto que preciso desesperadamente falar com você: sobre a magia reversa do espelho. Percebe que nos vemos nele invertidos? Que nossa autoimagem é uma mentira logo de saída?  Pois

O Último Dia

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Eu vivo o dia. E ele me basta. Quando veio a pandemia, eu já havia aprendido, nos solavancos da viagem, o que muitos hoje terão de engolir goela abaixo: só existe o dia. E até menos: a hora, o minuto, o instante. Mas não sejamos poéticos demais. A poesia pode ser muito mais cruel que uma ilusão. Vamos ficar com a eternidade de um dia: este dia. Estamos vivos. E é temporário como a existência da Terra e seu balé cósmico girando sobre si mesma. As urgências se dissolveram na incerteza. O universo mandou o ser humano ficar calado no seu cantinho. Eu posso ouvir o silêncio gritando lá fora. E mesmo o homem, que anda pela rua com sua máscara colorida, está silente, desanimado de falar. Ele não constrói mais com tijolos de vento seus castelos improváveis. Atrás da máscara de pano, leva a boca adormecida. Os ouvidos embutiram-se, escutam os apelos sempre protelados da alma. Porque a vida agora dura um dia, esse dia, e somos pequenos e vulneráveis. Passamos de caçador a caça. Com a morte

HARARI, O INÚTIL

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O historiador me contou no seu livro: a história dá ré. Não sei de onde eu tirei a ilusão de que a humanidade avançava numa linda e indefectível espiral rumo ao infinito. A história dá ré, como se fosse apagada da memória coletiva humana, como se as páginas dos livros onde ela morava fossem lentamente evanescendo até o vazio total.   E então, fosse necessário viver tudo de novo, capotar na mesma curva, bater o joelho na mesma quina, entrar na mesma rua sem saída. E a história, então, se repete,   como um cacoete neurótico, uma necessidade doentia de lavar as mãos, checar as trancas das portas, ou fazer qualquer outro gesto inútil, vago, estéril. E de nada serve existirem o historiador, seu livro e seu conhecimento super-humano. Nada será capaz de calçar o carro da humanidade em sua sanha de despencar ladeira abaixo. Lá dentro, o povo retroage com os olhos vidrados lá na frente. Voltam, crentes que avançam. Voltam porque, na pressa de avançar, descuidaram da memória que se perdeu. V

Solo Fértil

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Tudo já estava lá disperso no canteiro das rosas, umas ervas daninhas aqui e acolá que não nos importaram. Como gritos de mulher vindos, de vez em quando, do apartamento vizinho que a gente resolve fechando uma janela. As plantas daninhas foram deitando finos braços aos pés das roseiras. No começo imperceptíveis, lidáveis. E chegamos até a achar alguma graça em suas folhas tortas, agressivas, abusadas. Um vegetal descontrolado não seria melhor que a terra já tão escavada ali exposta feito ferida? Começamos a inventar suspeitas de flores nos seus caules e demos as costas às roseiras que são trabalhosas e exigem mais cuidados civilizatórios. A erva, por nós autorizada, espalhou rápida suas ramas pelo jardim e estrangulou os pés de flor. Quando acordamos, tinha engolido a terra com seu mar de raízes. Algo na rapidez e na força com que se espalhou me fez entender que a planta não era uma invasora e o canteiro, que um dia eu quis de rosas, era, na verdade, seu berço.  Não era Caruru, Car