Vitória Seca


Eu estou gravando esta mensagem pra você, amigo desativado, mas não vou enviar. Ainda bem que o WhatsApp tem esse recurso: gravar e apagar.  Vou apagar porque sei que seus ouvidos há muito me apagam. Me apagavam sempre que você ria com sua superioridade prática das minhas humanidades idealistas. Eu dizia que o discurso da violência encorajaria o ato da violência, que o verbo autorizava o gesto, lembra? E você retrucava que eram dramas de poeta.  E mandava tocar em frente. Pendurava no meu pescoço um crachá de alarmista paranoica e mandava tocar em frente. Me entupia de rótulos para se defender de qualquer reflexão que se colocasse entre você e seu sonho desesperado de felicidade. E eu entendo. Já fiz isso no passado, já dei meus passinhos no baile do fanatismo.  E insisti em conversar contigo justamente porque, na mesma curva fantasiosa dos mitos salvadores, eu havia capotado feio. Você, então, me pediu que parasse de namorar tragédias e te dissesse coisas boas. A curva chegando, seu pé pisando fundo no acelerador, e eu não conseguia falar de coisas boas. Você se irritou pra valer e deixou bem claro que queria acreditar e ponto final: do velho pneu mal cheiroso e carcomido iria brotar uma flor. É só um pedaço escuro de borracha, retorqui da última vez que nos falamos: tem sido um pneu há décadas. E passei definitivamente dos seus limites. O inimigo agora era eu. Não nos falamos mais e fiquei muito tempo observando aquele pneu cheio de autenticidade agora encarregado de produzir flor. Ao contrário de uma gente competitiva magoada que perambula nas arquibancadas do estádio, não torci pra ter razão. Quando se está perdido uma vida inteira no deserto, ter razão sobre o lago ser uma miragem é vitória seca, é poço de dor. Mas, mesmo carregando uma sede de flor igualzinha à sua, escolhi o caminho inverso: quero ver o horror na sua inteireza, com olhos bem arregalados, todo ele. Quero em detalhes a composição da areia movediça que nos devora. Sem anestesia. E o pneu, amigo desativado, não se mostrou só um pedaço carcomido de borracha, ele ainda carregava a água parada de séculos de história onde as larvas do nosso atraso se reproduzem. E nunca, nunca mesmo, a ilusão do pneu foi tão tosca e tão explicita. Parece até que a própria ilusão cansou de nos iludir. Ontem a violência, mais uma vez, movida por muitas palavras infelizes, explodiu em ato numa das avenidas mais famosas deste país. E eu não encontrei nenhuma superioridade idealista para rir do seu equívoco prático. Porque nossa conexão cortada também é uma ilusão. Estamos amarrados ao mesmo tronco, boiando no mesmo rio, a caminho da mesma imensa queda d’água. Eternamente. Gritando um com o outro enquanto o tronco avança rio abaixo, ou mudos e surdos um ao outro. E antes de apagar esta mensagem, que você nunca irá ouvir, eu queria te dizer uma coisa boa: quando chegarmos à cachoeira, desta vez, eu vou cair de olhos abertos. 
*
*
*

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Pequeno Príncipe e a Cobra

Ilusão

Platão e o Macaco Pelado