Abismo 5

Morrer é mais assustador lá na zona sul onde eu trabalho. Por que, quem tem grana, se desacostuma de lidar com  a morte. Quando um sujeito é morto naquelas casas grandes, naquelas ruas largas cheias de árvore, é um escarcéu. Ou deve ser. Na verdade, nos doze anos que trabalho lá nunca mataram ninguém. Do lado de cá, onde eu moro, cantiga de ninar é sirene, tiro, gritaria noite adentro. Daí que a morte não assusta tanto. Ontem foi a prima de um, anteontem o filho de outro. Até criança morre mais fácil aqui. Se tem escarcéu quando matam criança, não dura muito, porque a gente precisa tocar a vida dos que ficaram. Não pode ficar muito tempo parado chorando. A urgência da vida faz a morte ficar pequena. Então, quando a gente do lado de lá do abismo fala em risco de vida, eu dou risada. Já disse pra minha patroa: do lado de cá é difícil tomar susto. Agora estão falando do tal vírus. Todo dia morre gente a rodo, que nem mosca. Lá na zona sul onde eu trabalho, todo mundo quietinho dentro das casas, assustados. Não estão acostumados a morrer que nem mosca. Se saem na rua é de máscara na cara e álcool gel na bolsa. Na volta, se desinfetam inteiros. Não toleram nem um risquinho de morte na sola do sapato. Do lado de cá, quando chego em casa à noite, os bares estão cheinhos de gente. Os tiros, gritos e sirenes esperando a gente deitar na cama. E o povo bebendo enquanto a morte não chega. Minha patroa fica de boca aberta me ouvindo contar. Eu explico bem devagarinho pra ela entender: do lado de cá, onde eu moro, a morte brinca com os moleques na rua, sai com os adolescentes da escola e caminha ao lado deles até a porta do barraco, enche a cara toda noite com os marmanjos nos botequins e volta com muitos maridos bêbados e agressivos para casa. Ela passa várias vezes pela minha rua balançando seus guizos feito cobra indo buscar alguém. Eu, deitada na minha cama, sinto o perfume dela entrar pela janela e fico quietinha respirando devagar até que suma. E digo: dessa vez, passou. Sem medo. Por que medo a gente também não pode ter mais. Medo da morte é luxo no país onde eu moro do lado de cá.
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