Sem lodo
Saiba você que eu também afundo. Eu, a mulher sorridente da
foto nas redes sociais. Tenho olheiras. Você não as conhece porque aqui, nas
redes sociais, sempre estou esterilizada por um corretivo. Tem dias que me arrasto,
que ando feito um autômato, que me afogo em pensamentos ruins. Nestes dias não
faço selfie. Nem suporto me ver na tela do celular. Os cabelos brancos
aparecendo nas têmporas. As manchas na pele. Tudo grita em alta definição e
mais megapixels do que minha autoestima suportaria. Mas quero que você saiba: eu
também afundo. Eu, a mulher das palavras bonitas? Tem horas que estou tão muda
que escuto o meu vazio. Tão assustada que me julgo incapaz de atravessar uma
rua. Tão perdida que nem sei mais onde mora minha vontade. Nestas horas não gravo
vídeo. Se pego o celular é pra me anestesiar com conteúdos banais e fugazes.
Coisas que não tenham poder nenhum de resvalar numa ferida. Risadas ilusoriamente
gratuitas que custam minha distração de mim e do que não posso mais. Mas
preciso que você não se engane, que você saiba. Eu blefo. Eu passo duas camadas
de corretivo abaixo dos olhos. Eu posiciono a câmera sempre no melhor ângulo. Eu perco tempo
demais buscando a luz favorável. Para imprimir no vazio do mundo digital esta
farsa de maravilha. Por favor, não acredite. A flor de lótus sem o lodo é só marketing, o
que pode nos salvar de fato é a poesia das olheiras.
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