Sobre

Não é sobre o que fazer, sobre a brutal necessidade de ser o que não se é. É sobre a forma do ir. Me arrastar na poeira é o meu não ir. Agarrar a menina pela gola do vestido e obrigá-la a olhar para o que falta, para o que ela ainda não é ou já não é mais... o meu não ir. Mosca se debatendo no vidro muito limpo e transparente da neurose. Empurrada pela dor de nunca bastar, nunca estar inteira, nunca estar pronta. Não é sobre o mestrado, o doutorado, a especialização em sei lá o quê. Não é sobre o emprego, sobre o prêmio, sobre a grana no final do mês. É sobre o prazer de conduzir-me com doçura pela estrada menos esburacada. É sobre a generosidade de dizer a mim mesma que será leve. Será tudo desde que seja com carinho e será nada se for de novo cortando a pele. Porque não é sobre destino. É sobre este cacoete nascido do trauma quando precisei caminhar descalça sobre pedras. Desde então já dei muitas provas de que sei me mover na dor, o meu não ir. Mas já vejo a delicadeza dos meus pés e o caminho de folhas secas e sedosas e estou chamando o universo para outra conversa. Posso viajar para lua ou correr até a esquina e posso ficar quieta onde estou mas meu chão será um colo e não um susto. Agora o amor é o meu ir.

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